16 abril, 2012

Brancas nuvens

Eu jurava de pés juntos que sua lembrança iria passar em brancas nuvens por aqui. Coisa passageira, um sopro de vento, aquela centelha que logo, logo se abranda. Lembro como se fosse hoje: eu podia correr quantas vezes fosse preciso em direção à janela da velha casa que lá estavam elas: as tais brancas nuvens -- sem muita forma definida, sem nesgas de um possível ciúme das outras companheiras e, sobretudo, sem a pressa habitual de preencher todo aquele azul. Era ali, no céu, seu antigo pedestal. Altar nosso de todos os dias. Sim, eu quis levar você até o céu, não lembra? Naquele tempo, eu fazia questão de abrir a janela, olhar bem para o alto e pedir, todos os dias, toda sorte de bênçãos para uma vida a dois que só fazia ser promissora. Mas fazer ser não é bem parecer -- e, ao que me consta, você não se sentiu muito à vontade nessa posição. Morar ali, bem no meu céu, lhe causou um desconforto difícil de lidar. Eu, aqui, não podia fazer muita coisa. Afinal, não podia controlar o que sentia. Simplesmente amei. Quis ver você no mais alto dos pedestais. Me dediquei e vi que deixei passar a vida, assim: em brancas nuvens.

Pela fresta

Relutei muito em bater à porta. Não queria ver, depois de tantos anos, como você estava. Mas, de sobressalto, como uma pedra que cai do alto, sem dono, sem mira, você surgiu e forçou uma entrada até então não desejada. Eu quis deixar tudo pra trás, quis fazer da velha casa uma outra morada -- ou quem sabe até encontrar um outro cantinho com mais sossego. Você, mesmo não sabendo, mesmo desavisadamente, conseguiu me encontrar. Eu estava aqui de mãos atadas, ainda sem prumo, mas sempre à espera de alguma notícia sua. Hoje, da fresta, vi de longe seu sorriso. Você me pareceu diferente. Na minha época, parecia um filhote solto no mundo, com as vestes rotas e maltrapilhas. Hoje você mudou. De certa forma se mostra reluzente entre os pares que comungam dessa sua felicidade suprema. Por um instante, queria estar por ali perto. Por outro, me lembrei do quarto desarrumado que você deixou naquela saída abrupta. Tentei arrumar aos poucos, mas muito ainda estava trincado. A bagunça, no entanto, me era de certa forma acolhedora. Gostava de revistar os papéis soltos que ficavam no chão da velha casa. Por isso, nem pensava em um dia revisitá-lá. Até o exato instante de você novamente aparecer. Foi como naquele primeiro dia: sem muitas palavras. Apenas o olhar, um pouco do sorriso e o apelido que volta e meia ainda se assobia por aqui -- consoante-vogal, consoante-vogal. Talvez você não me tenha percebido naquela frestinha ou pelo olho mágico, mas eu estava lá o tempo todo, aguardando -- ou quem sabe guardando -- você. Pena que você não quis entrar. Pena.

30 dezembro, 2009

Palhaço

No camarim, já cansado do espetáculo, de todo aquele circo armado, o palhaço veio a se sentar. Por um instante, mirou o espelho. E, por mais um instante, fitou o que lhe escapara à maquiagem branca que encobria o rosto. Era de um olhar triste, lábio caído e semblante envelhecido por certas agruras difíceis de explicar. Por isso, preferia seguir a vida como palhaço e fazer do riso alheio seu maior aplauso. Era essa sua força motriz para seguir adiante, serelepe e esfuziante pelas ruas. Mas, diante da sinceridade do espelho, não tem mais gargalhada, muito menos sonoras palmas. Apenas o silêncio despido, pouco a pouco, em chumaços de algodão com água. E lentamente revela-se em movimentos lentos e circulares, a outra face do rapaz, com rugas por ele próprio desenhadas para sobreviver aos dotados de fúria e dor nesse mundo. É que ele precisava a todo custo mascarar qualquer vicissitude infantil ou pueril que carregava no corpo, ainda que seu maior sonho fosse ouvir reverberar em cada canto de seu corpo o aplauso de quem só busca ser reconhecido. Desta vez, por aquilo que é, e não por aquilo que encena ser num palco.

[Ouvindo “Fogueira”, na voz de Ângela, com os versos sussurrando na cabeça: “Deixa eu cantar / Aquela velha história, o amor / Deixa penar, a liberdade está (também) na dor”]

16 novembro, 2009

Para Clarice


“Estou caindo numa tristeza sem dor. Não é mal. Faz parte. Amanhã provavelmente terei alguma alegria, também sem grandes êxtases, só alegria, e isso não é mau. É, mas não estou gostando muito desse pacto com a mediocridade de viver”.
[Clarice Lispector]


Eu também não, Clarice. Os dias por aqui se passam exatamente assim: oscilantes, alternando tristeza e alegria num ritmo ainda incerto. Hoje, por exemplo, estou feliz sem qualquer motivo, mas ontem me vi por algumas horas num profundo pranto interno. Coisa passageira, de menino manhoso talvez, que ainda não descobriu como faz para fugir dessa mediocridade. Minha relação com a vida, cara companheira, tem sido tão torpe ultimamente que ando preferindo o sono. Talvez esteja melhor ao acordar. Boa notícia: há cinco dias não faço uso de remédio para interromper a insônia. E tenho sonhado bastante, diga-se de passagem. Ou melhor: a memória tem colaborado nessa minha relação com os sonhos. Hoje eu lembro bem: me vi pequenino, na casa da minha avó. Era de tarde, céu ainda róseo, e eu tomava banho de mangueira. “Perto de muita água tudo fica mais feliz”, diz mais ou menos a frase de seu amigo Rosa. Talvez seja por isso que eu acordei bem. Estou em São Paulo esta semana, mas em breve vou procurar ver o mar no Rio.

Ao irmão que eu não tive

Queria muito poder contemplar sua existência hoje. Fecho os olhos e não consigo lembrar nossa despedida. Era garoto ainda, você ainda mais novo. Seria bom tê-lo conosco hoje. De verdade. Aqui em casa, as coisas vão caminhando. Papai vem tentando se reinventar, sem muito sucesso, e a mãe está ligeiramente cansada. Já tentei carregar os dois no meu colo, mas não dá. São arredios demais – talvez tenha puxado isso deles. Será que você seria arredio também? Só sei da cor dos seus olhos, azuis, como os meus e os da mamãe. Sei do seu nome, Pedro, e do sobrenome. Seu quarto continua conosco, hoje ocupado pelas roupas e algumas traquitanas de nossa mãe. Eles não falam de você, mas não se sinta desmerecido por isso. O amor ainda existe – entre eles e para comigo. Hoje eu o represento aqui. Mas isso não significa que não lamento por sua ausência entre nós. Queria tê-lo por perto para compartilhar a família. É muito sentimento e responsabilidade para lidar sozinho. Sua companhia me faria muito bem, mesmo pensando nas possíveis brigas (acredite: muitos me têm como uma pessoa de difícil gênio, mas as pessoas aumentam muito o que falam. Eu prefiro acreditar que a gente se daria muito bem). Qual faculdade você escolheria? Que segredos teríamos um com o outro? Onde eu o buscaria à noite (sim, o carro é meu e eu não empresto, ponto final)? Em que eu mais poderia ajudá-lo? Hoje sou jornalista, posso dizer que sei um pouco de alguns assuntos. Sim, e tenho uma cama de casal para deitar ao seu lado e ver um filme. E um videogame com dois controles para brincarmos. Não ria: eu guardei esperando que você um dia voltasse. Ainda aguardo. Pena eu não conseguir encontrá-lo nos sonhos. Seria bom conhecer e reconhecer você. Mande notícias, por favor. O espaço para comentários aqui está sempre aberto.

14 novembro, 2009

Assinado eu

[Inspirado num sonho e na voz da Tiê]

Um sonho recente ainda me instiga. Você estava nele. Quanto tempo nos falamos, quiçá nos encontramos, não é verdade? E, de sobressalto, como quem não quer nada, eis que você me surge inesperadamente. Eu estava vulnerável. Não pede licença, não chega de mansinho e, como de hábito, causa pertubação. Incomoda não por causa de sua mania de querer se exibir sempre. Incomoda porque me fez suscitar as dores e delícias de estar ao seu lado. Me fez sentir saudade. Estava sentindo falta de quem eu ainda não tinha -- e você, por alguns instantes, tive ao meu lado. A falha, neste caso, dói mais que a falta. Por que não bateu a porta? Deferência, de minha parte, nunca lhe faltou. Já lhe estendi tantas vezes meu tapete vermelho. Sei que algumas decisões minhas soaram a você inaceitáveis. Eu sei. Mas nem por isso pense que o sonho é o melhor ponto de encontro para nós dois. Prefiro o tete-a-tete, olho no olho, como aquele dia na avenida. Lembra? Ainda sigo a direção que meu coração ordenou, mas espero sinceramente que essas nossas paralelas ainda se cruzem por aí.

07 novembro, 2009

Ladeira

Caro Daniel,

A ira um dia lhe irrigava as palavras, que brotavam em profusão dentro da velha casa. Hoje já não há mais tanta raiva. Talvez tenha sido drenada para algum canto aí de dentro, apêndice pronto a eclodir a qualquer momento. O que circula então pela liquidez dos sentimentos? Não sei – e exatamente essa dúvida deve estar atordoando-o. Só não permita entravar-se diante da interrogação. Ainda é possível acreditar nos seres humanos, a começar por você, que ainda personifica a risada quando está no meio dos populares. Não se deixe mudar na solidão. Converse comigo. Saiba que eu estou sempre aqui para compartilhar com você o peso contumaz de bancar quem você desejou ser. O caminho começou a ser trilhado, meu caro, não tente dar para trás. Caso tenha se cansado, pare um pouco. Parar nem sempre é sinônimo de estacionar, lembre-se disso. Não queira ser sempre a lebre da história, pois nunca se sabe o quanto nosso peito suporta o ritmo ofegante da ladeira. Sim, Daniel, estamos numa eterna subida. O reto não tem mais graça. Por isso, a derrapagem pode ser mais dolorida, mas nem por isso irrecuperável.

Conte com o bom e velho amigo aqui,
Daniel

05 novembro, 2009

Terceira margem

Conta uma lenda iorubá que, para chegar ao Supremo, deveria-se perpassar antes por uma espécie de nove céus. Todos eram comandados por uma rainha, dona dos ventos e das tempestades. O dia estava claro naquele dia, mas a menina insistia em descobrir o que havia depois do azul. Olhava insistentemente para cima e nem se incomodava com a luz do sol batendo reta em sua vista. Queria porque queria ir mais longe só com o olhar. Era quieta e observadora a moça, mas não ia muito além na suas inserções com o céu. Chegava até à terceira margem, talvez, daquelas delineadas pelos ancestrais em priscas eras. O resto era só um clarão, que lhe embaçava os olhos tamanha a intensidade da luz vinda do alto. Passaram-se algumas horas, e a menina se cansou. Já era crepúsculo, o rosa pincelava a tintura azul do alto. Foi quando um sopro de vento cantou no ouvido da menina. Era a tal rainha. Feche os olhos, disse-lhe, no seu quarto. À noite eu a levarei para onde quer chegar. Eis o momento de atravessar todas as nove fronteiras que pairavam sobre sua pequenice e de contemplar a imensidão um dia desenhada em seu caderno. Ela e o Supremo se encontrariam nos sonhos e devaneios de quem só buscava uma explicação para a grandeza da vida. Nessa noite, depois de atravessar a tal terceira margem que tanto parecia limitá-la, a moça dormiu mais feliz do que de costume. Sentiu-se leve, como há muito não ousara se permitir.

27 outubro, 2009

Paralelepípedos


Ainda caminho andarilho, mas agora prestando menos atenção nas pedras que compõem o caminho. Eu estacionei na fossa que existe ente elas, o espaço vazio entre os tijolos, o pequeno vão que paralisa o próximo passo. O que se passa nesse espaço tão miudinho? O que ali dentro se acumula? Será que nele eu vou tropeçar? Mal me dei conta de que há muito caíra nessa interseção de corpos que não se unem. Espaço engessado pelo tempo, que cimenta o pé de quem só quer pular a amarelinha nos paralelepípedos. O céu, por ora, nem é o limite da brincadeira. Só queria mais disposição para sair desse buraco e dar o passo adiante. Por favor, girem a roleta ou lancem os dados. Não dá mais para ficar limítrofe no jogo. Quero avançar, pelo menos, três casas.

16 outubro, 2009

À toa [ou ‘Oxossi’ ou ‘Pais e filhos’]

Onde já se viu nessa vida um filho maldizer o próprio pai? Deus me guarde, faça logo o sinal da cruz antes que qualquer maleita lhe ocorra tamanha a gravidade do seu pensamento, menino. Mas é verdade, minha senhora: que pai é esse que insiste em ser carregado pelo vértice mais fraquejado da casa? Como pode cobrar tanto de quem só quer leveza nessa vida – e tentou dar a quem tanto tinha valor? Pai assim não merece o filho que tem, não pode merecer, mas há quem já tenha escutado na vizinhança: foi pouco o que o mocinho fez pelo velho. Eu juro: tem gente que insiste em apontar uma falta, embora o que reverberasse mesmo ali era a falha da relação dos dois. Não bastaram as confissões, as entregas ou a confiança depositada em todo esse tempo. O tal pai, dizem, tem andado ultimamente com tanto cabelo na venta que, coitado, nem o diabo mais aguenta. E danou a cobrar o que não podia, numa intempestividade imprevisível que poucos dão conta. Ou aceita logo o amor do filho que tanto um dia te quis ou então renega essa criança logo de vez. Não dá é para deixar a cabeça do menino assim, confusa, diante desse furacão todo montado num palco de incertezas. Pois vai chegar uma hora em a despedida vai mudar de prumo. E aí, minha senhora, talvez seja tarde demais para esse pai desmanchar o desengano e mostrar que, na verdade, ele ficou tão atordoado à toa.


“É muita mágoa
Nem mesmo o mar
Tem tanta água
Pouco prazer pra muita lástima
Haja milagre
Pra tristeza se acabar
É muito pranto
Tem povo triste em todo canto
É muita dor pra pouco santo
E o santo vira dois
É santo e é orixá”
[“Santo e orixá”, de Paulo César Pinheiro]