16 abril, 2009

Ângelo


Quando a dúvida lhe acometia, ela não tinha dúvidas: consultava sua melhor amiga, aprendiz de cartomante que gostava de desfilar suas cartas pela mesa branca que tinha na sala. Sempre recorria aos personagens nas primeiras horas de aflição. E ontem não foi diferente: Ângelo reapareceu. O homem ela ao certo não conhece, também nunca fora apresentada. Nem o nome de fato sabe ao certo. Pelo sim, pelo não, quis limar logo a dúvida. Batizou o moço de Ângelo, talvez pela proximidade com que ela o deificou na primeira vista. Estava ali seu tótem, objeto de veneração que tanto lhe faltava, desde os tempos de infância, quando aprendeu a juntar as palmas das mãos antes para só então olhar para o céu. Com Ângelo, as nuvens estavam sob seus pés. Ela o carregava no peito. Era seu escapulário, Ângelo frente, Ângelo verso, Ângelo corrente, em seu peito sempre presente.

A Ângelo eram dedicados toda sorte de flores, agrados e perfumes, sem pedir muita coisa em troca. Bastava só um olhar. E o sorriso que a encantara logo de cara (mas que não havia sido direcionado inicialmente à sua expectativa). Mesmo assim, preferia idealizar. Ou melhor, não preferia: simplesmente idealizava. Sonhava alto, com os jantares, uma troca de cartas ou um possível esbarrão no corredor (esse, um dia, aconteceu -- produzido por ela, claro).

O beijo não queria imaginar, embora bastasse um empurrão para logo tirar essa imagem da gaveta e ampliar na tela de cinema montada em sua mente. Queria, no entanto, se manter preservada ao inédito, ainda que já fosse apresentada às sensações quando dois corpos se tornam um ao encontro de um beijo. Com Ângelo seria diferente de tudo, de todos (que, é justo dizer, não somam muitos), do mundo. Sim, porque a ela o mundo não importava mais -- o universo necessário já estava ao seu redor. E Ângelo orbitava, ainda que sem asas, como o sol da meia-noite que iluminava seus sonhos a cada madrugada em que dividia espaço na cama com o vazio.


Chegou, pobre menina, a ensaiar como diria "Eu te amo" para o rapaz. Primeiro, ao espelho, disse Eu te amo (franziu os olhos imediatamente com medo de ouvir Também, Já sei, OK ou coisa do gênero. Ufa, nada falou a ela). Depois inventou de conjugar um verbo novo: Eu te Ânge-lo. Ângelo-o. Eu Ângelo. Pronto, mais uma vez dois corpos unidos -- nome e sentimento, um belo casamento na visão da amada.

À moça, Ângelo a bastava de certa forma, mas a menina não deixou de sentir certa aflição. Como agir? Será que devo? Melhor levantar a ficha antes. Casado, solteiro, mancomunado? Enamorado, desavergonhado, desviado? Eram essas algumas das dúvidas que povoavam a moça. E tudo isso sem cerrar os olhos, sem muitos suspiros ou unhas roídas. Eram perguntas que circulavam internamente, num trânsito vertiginoso de medos e outras sensações correlatas. Por isso, não hesitou: correu para as cartas da amiga. Quem sabe ali não se consegue ir além do que está mais do que por ela projetado?

Os arcanos não quiseram identificar Ângelo. Preferiram revelar o Eremita, nobre senhor que se apoia no cajado para encontrar seu caminho. Junto dele, uma lanterna velha que insiste em continuar acesa, mesmo diante da longa trajetória percorrida pelo viajante. Luz que pede: olhe para dentro para acordar. Quem olha pra fora sonha, já lhe diziam os psicanalistas. Deixe Ângelo no céu, avisou a amiga cartomante, anjo torto que desvia a moça de seu caminho. Melhor pôr os pés e joelhos na terra, apalpando o chão em que cada passo pisa até encontrar verdadeiramente todo esse amor perdido no breu de uma ilusão -- sem remetente, sem escova de dente, sem caixa postal.


[Moral: Lembremos sempre Guimarães: "Viver é etecétera". E tal. E ponto final]
[Da moça pouco se soube de algo depois]
[
Ângelo continua sorrindo ao mundo]

Nenhum comentário: