27 outubro, 2009

Paralelepípedos


Ainda caminho andarilho, mas agora prestando menos atenção nas pedras que compõem o caminho. Eu estacionei na fossa que existe ente elas, o espaço vazio entre os tijolos, o pequeno vão que paralisa o próximo passo. O que se passa nesse espaço tão miudinho? O que ali dentro se acumula? Será que nele eu vou tropeçar? Mal me dei conta de que há muito caíra nessa interseção de corpos que não se unem. Espaço engessado pelo tempo, que cimenta o pé de quem só quer pular a amarelinha nos paralelepípedos. O céu, por ora, nem é o limite da brincadeira. Só queria mais disposição para sair desse buraco e dar o passo adiante. Por favor, girem a roleta ou lancem os dados. Não dá mais para ficar limítrofe no jogo. Quero avançar, pelo menos, três casas.

16 outubro, 2009

À toa [ou ‘Oxossi’ ou ‘Pais e filhos’]

Onde já se viu nessa vida um filho maldizer o próprio pai? Deus me guarde, faça logo o sinal da cruz antes que qualquer maleita lhe ocorra tamanha a gravidade do seu pensamento, menino. Mas é verdade, minha senhora: que pai é esse que insiste em ser carregado pelo vértice mais fraquejado da casa? Como pode cobrar tanto de quem só quer leveza nessa vida – e tentou dar a quem tanto tinha valor? Pai assim não merece o filho que tem, não pode merecer, mas há quem já tenha escutado na vizinhança: foi pouco o que o mocinho fez pelo velho. Eu juro: tem gente que insiste em apontar uma falta, embora o que reverberasse mesmo ali era a falha da relação dos dois. Não bastaram as confissões, as entregas ou a confiança depositada em todo esse tempo. O tal pai, dizem, tem andado ultimamente com tanto cabelo na venta que, coitado, nem o diabo mais aguenta. E danou a cobrar o que não podia, numa intempestividade imprevisível que poucos dão conta. Ou aceita logo o amor do filho que tanto um dia te quis ou então renega essa criança logo de vez. Não dá é para deixar a cabeça do menino assim, confusa, diante desse furacão todo montado num palco de incertezas. Pois vai chegar uma hora em a despedida vai mudar de prumo. E aí, minha senhora, talvez seja tarde demais para esse pai desmanchar o desengano e mostrar que, na verdade, ele ficou tão atordoado à toa.


“É muita mágoa
Nem mesmo o mar
Tem tanta água
Pouco prazer pra muita lástima
Haja milagre
Pra tristeza se acabar
É muito pranto
Tem povo triste em todo canto
É muita dor pra pouco santo
E o santo vira dois
É santo e é orixá”
[“Santo e orixá”, de Paulo César Pinheiro]



06 outubro, 2009

Eu não sei levar o amor de forma mambembe. Mas, por favor, não me faça de palhaço. Não me deixe acreditar que o relacionamento se constrói a dois quando, na verdade, você só pensa na sua lacuna – Onde estou? Por que não ligou? Quem, afinal, é o egoísta da história? Eu sei que estava aqui, na velha casa de sempre, cujo endereço já lhe é peculiar e em cuja entrada você nunca precisou de deferência. Bastava bater à porta. Eu só estava me arrumando para te receber da melhor forma que pude. Desculpe se demorei e não cheguei a tempo de lhe receber como devia. Tropecei no cadarço desamarrado. Me é muito difícil lidar com nós, você sabe. Tentei desatar alguns com você criando um outro “nós” – eu e você, embalados por músicas escolhidas, sentidas, lembradas, vividas, planejadas. Embalados por um sentimento compartilhado a dois. Ainda cheguei a tempo de te ver pelo olho mágico da porta: era de rosto largo, olhos ainda verdes prontos a dizer algo que a boca protelava em palavras. Não precisa me orquestrar o dicionário com suas lógicas e motivações. Eu já sabia de antemão que você chegou para se despedir. Apresentou-se a mim naquele mês em forma de ventania, sagrado ar que remexeu os papéis e móveis do meu quarto. Ainda vejo a desordem, e de certa forma a cultuo. Intuitivamente, talvez; é a fisiologia de juntar os cacos para ver se preenche a lacuna oca e embrutecida pelo tempo. Talvez nem faça muito sentido ocupar mais esse espaço, mas ainda me é necessário. O vento já passou por ele hoje e levou com ele o pouco da folha seca caída no chão. O pedaço de mato onde eu me escondia só por uns instantes, antes de me revelar por inteiro a você. Por ora, não existe mais ciranda aqui dentro. Só a batida perene de um coração que não aprendeu a desamar com um mero tchau.