27 outubro, 2008

Saia da velha casa



Saia da velha casa agora. Você não fez valer o acordo de um ano atrás, quando nos demos as mãos para sincronizar cada passo das pernas. As minhas foram além do que o passo pensou em alcançar, enquanto as suas insistiram em se cruzar, mesmo diante do esforço nato de querer vencer e persistir na luta. Você não teve a hombridade de seguir adiante num caminho que se tornou favorável depois de todo vento desferido para ver você reconquistando seu mérito. Agora não queira me alcançar mais. Já alçei vôo para um qualquer lugar.

Saia da velha casa agora. Sei que de você eu cobro demais, eu corro demais, eu me exalto demais. Mas também sei que, por mais piegas que possa parecer, eu amei você demais. E isso hoje me dói reconhecer. Porque não se ama alguém sem antes olhar para o próprio buraco do peito, juntar os cacos e reconhecer: aqui dentro mora o amor. Próprio, exclusivo, meu. Quer dizer, mora ou jaz, pra mim hoje tanto faz. Com você, não vejo mais diferença na forma como esse sentimento se repousa.

Hoje apenas a frieza é que tem me assustado as noites. Tem chovido demais em mim nesses últimos dias, mas não faço mais questão de estar contigo na janela esperando o alaranjado do céu indicar um novo tempo. Vivo a intensa tempestade que grita aqui dentro, mas o guarda-chuva que cobre outras dores não deixa mais a água escoar pela pele, que dirá pelos olhos.

Ainda assim, fica tudo meio seco, meio tapado, meio acumulado, meio embolorado. Até chegar a hora do banho e poder, enfim, forçar alguma lágrima a cair no rosto já molhado pela derrota de ter ferido um compromisso comigo mesmo: não mais te ajudar. Prefiro, ainda que sem mais notícias, saber que você é capaz de dar seus próprios passos sem precisar mais dos meus pés. Ou quem sabe das minhas costas, tão depositárias da sua inércia. E, claro, também da minha estupidez em ter acreditado que as coisas poderiam mudar. Vã ilusão isso tudo. Por isso, eu repito de voz altiva, de sombrancelha cerrada e de dedo em riste:


- Saia da velha casa agora.

[Texto escrito no impulso, na frieza e na tristeza, antes de o banho servir de ungüento para apaziguar as feridas]

04 outubro, 2008

Tomar rumo



Desde pequena, ela foi ensinada pelos mais velhos a não ficar muito de frente para a janela nos dias de sol muito a pino. Era como se, de certa forma, protegessem a menina de uma visão muito ofuscada do mundo. Mas ela, curiosa que só, não hesitava em espiar pelo parapeito um pouco daquela luz irradiante que tanto sentia falta. Contava isso às amigas bonecas que lhe compartilhavam a cama, as brincadeiras e parte da infância.

Certo dia, ela se viu sozinha naquela velha casa que morou. Todos haviam saído e, por isso, não esperou em logo se apresentar, cara a cara, com aquela fronteira que tanto a distanciava do mundo de lá. Nos primeiros minutos, de rosto colado no vidro, a menina não compreendia bem por que da diferença de calor entre sua testa e a luz que perpassava a janela sem qualquer cerimônia.

Ainda sim, paralisou o olhar contemplativo diante daquela novidade toda. Só não contava com o inesperado: um inseto, para ela de nome indefinido, que bateu contra o vidro sem pedir muita licença à mocinha. Nojo e curiosidade chegaram meio assim, misturados, nos olhos da menina, que fitou bem para conhecer o visitante.

Não deu para tocá-lo de imediato, mas não titubeou e logo abriu aquele vidro. Outro espanto: o bichinho, assustado com o movimento brusco, voou. Tomou seu rumo na vida. E ela, mesmo sentida com a ausência do novo amigo, esboçou um sorriso de canto de rosto. É que, finalmente, a menina pôde sentir a inexplicável mágica de ter luz e ar dançando juntos ali, às suas mãos.

A partir desse instante, ela também decidiu, mesmo pequerrucha, a tomar outros rumos. E se lhe faltasse luz no quarto escuro das bonecas, ela sabia que, da janela, vinha o brilho necessário para reinventar seu dia. Sua infância. O novo da vida.