30 dezembro, 2007

Oferta


Quando jogo flores ao mar, no fundo espero que elas, de alguma forma, retornem para mim na mesma medida em que foram presenteadas. O termo mais apropriado neste caso não é retorno – é retribuição, que pode vir numa nova forma de ofertar a minha dedicação e devoção ao amor sagrado.

Um dia antes, escolho as flores mais bonitas, aquelas que eu sei que lhe serão de bom grado. Não meço esforços para encontrar as cores ideais. As mais vistosas só são encontradas na madrugada, horário em que meu coração se transforma num relicário para preparar as deferências ao amor.

Na praia, minha adoração reverbera a cada flor que é ao mar ofertada. E algo instável, difícil de denominar, também pulsa forte aqui dentro. As ondas chegam, levam com elas os presentes ofertados. Rebate-os na areia e os toma de volta, de acordo com o movimento de cada onda que se forma nessa primeira hora da manhã.

A dedicação que eu tenho como oferenda deveria ser igual a essas ondas do mar, que dançam num ir e vir eterno, sincopado e inconstante. Tolo eu em só acreditar no raso que eu tateio na praia e desconsiderar a força do vento ou da tempestade, que rompe com o curso natural do mar e muda o destino das flores milhas depois.

Enquanto as flores a mim não retornam, sigo aguardando descalço na areia. Os olhos fitados no horizonte estão à espera de uma bruma qualquer, capaz de confortar minha ansiedade em ter sempre o retorno imediato, a retribuição agradecida. Faço votos de que a onda seja capaz também de consolar meu combalido amor próprio, que usa as águas do mar para verter lágrimas de uma criança ainda à espera do colo materno.

Que essa mesma onda seja capaz ainda de levar com ela minha fúria contida. E que, por fim, ela me dê o cansaço necessário para dormir e acordar minimamente renovado, depois de tantas horas em claro sob o altar da devoção. Pois amanhã já está marcado no último quadrinho do calendário: é mais um dia de ir à floricultura de madrugada. Mais um dia à procura de novas rosas para você saudar a chegada do novo ano.



Confesso entretanto que sou incapaz
De jogar fora assim as minhas lágrimas
Prefiro dormir sozinho no quarto
Talvez eu esteja bem melhor ao acordar
["Apenas timidez", Kid Abelha]

29 dezembro, 2007

Banho


— Antes de sair, tome um banho para se acalmar.

Assim recomendou minha mãe, numa eventual discussão comum a toda família. Pois hoje escutei como nunca o eco da voz materna, que fez perdurar o seu zelo mesmo na economia do carinho.

No banho frio, não dava conta de sabão, sabonete ou condicionador. A nudez não era ocasional: era como se eu me desnudasse para aquele momento.

A única expectativa em relação à água, a quem eu atribuí o poder de levar com ela toda a raiva em mim internalizada naquela hora.

Quanto à mágoa, eu pedi para que a água deixasse um tiquinho dela dentro de mim. Pode ser que um dia ela me seja útil.

Atrás da porta, mais uma recomendação da minha mãe:

— Não esqueça de me trazer a roupa suja.

GPS




GPS
S.O.S
Sós
São
Se
Sei
Sem
Sim
Sou

Seu


28 dezembro, 2007

Mapa


“Todos os sucedidos acontecimentos, o sentir forte da gente – o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer a outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Deus é que me sabe”
[Guimarães Rosa]



No mapa está
Meu amor cartesiano
Que une as coordenadas
Para, enfim, encontrar seu coração
Mesmo com a bússola caducada pelo mau uso do tempo
Mesmo aguardando a bonança depois das tempestades


27 dezembro, 2007

Janela


“Do lado de lá, as casas tinham uma casa que variava com as horas do dia e também conforme a atitude as janelas”
[Cecília Meireles]


Minha mãe sempre deixa a janela fechada
Com medo de a chuva entrar de repente
No meu quarto, ao menos, eu escancaro
Espero ansiosamente uma surpresa me arrebatar

Pode ser um passarinho
Pode ser um pé-de-vento
Pode ser um amor
Pode ser um aguaceiro
Pode ser um folha seca

Pintar a casa já me sai mais caro
Alergia à tinta, à poeira e à mudança
Eu me saio melhor no caminho do padre
Dá pra ligar de quando em vez o piloto automático

Pro dia
Pra vida
Pros erros
Pra você
Pra casa

“A vida é um vago variado”
Mesmo quando se tem no quarto uma só janela
Com duas únicas soluções de mudança:
Aberta ou fechada para o mundo

Acho que está na hora de quebrar o vidro
E, por ora, não juntar os cacos estilhaçados
Deixa que o vento uma hora espalha



“Então eu forcejei por variar de mim, que eu estava no não-acontecido nos passados. O senhor me entende?”
[Guimarães Rosa]


26 dezembro, 2007

Sobre o Natal


“Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.”
[Fernando Pessoa]



Esperei encerrar o dia 25 para rascunhar duas ou três impressões sobre o Natal. Tarefa difícil, pois este ano a frieza superou a tristeza habitual da noite. Mais do que celebrar a família e o nascimento, a ausência provocada pela morte reverbera nos corações iluminados apenas pelos piscas-piscas da árvore montada no canto da sala especialmente para a ocasião.

A frieza a que me refiro foi servida durante a ceia, que reuniu alguns dos entes mais queridos. À mesa, repartiam-se risos e palavras que, apesar de positivas, não refletem o espírito de união e confraternização apregoado pelo sino pequenino de Belém.

Os presentes são burocráticos: envoltos por uma embalagem e por um belo laçarote, não há nada comprado em especial, pensado exatamente no gosto ou feição daquela pessoa. O momento serviu apenas para constar nesta tradição inventada que, se é feita por tabela, o homem poderia ter “a fineza de desinventar”, lembrando bom e velho Chico.

Brigas ou ressentimentos? O Natal seria a deixa mais adequada para abrandar qualquer nesga que ainda habita os corações nas alturas. Mas optou-se por recorrer ao velho tapete de franjas, fiel testemunha dos maldizeres alheios embaixo dele escondidos.
Só à noite, sorrateiro, é que esse tapete começa a apurar os acontecidos na casa. Na sala arrumada para a festa natalina, foram estendidas no dia duas corredeiras novinhas, numa tentativa de cessar as intrigas, fofocas ou mexericos entre as mágoas da casa, reunidas antes num só local.

À meia-noite, veio o tradicional abraço, imediatamente seguido do “Boa noite” bocejado pelo cansaço. Eis o momento mais glorioso da noite, quando a sinfonia das portas e fechaduras revelou a solidão de cada personagem desse presépio. Na manjedoura, o Menino Jesus ainda sorria, iluminado, com suas pernas abertas e mãos para o alto, numa espécie de pedido de salvação.
Pois o messias empalhado sabe que seu destino é a cruz do tempo: ser guardado numa caixinha rumo à última prateleira do armário, até que o ciclo se vire para mais um Natal em família.

Com a última luz já apagada (exceto a da cozinha, para uma das tias não errar o caminho do bebedouro), fiz minha oração habitual já deitado à cama, que foi finalizada pelo “Amém” nosso de cada dia, pronunciado já de manhã, num levantar esbaforido para chegar ao trabalho. Na velha casa, o Natal aconteceu assim: cada um por si e Deus por conta dos mais pobres. Afinal, alguém tem sempre que fazer o serviço mais pesado.

24 dezembro, 2007

Eletrocardiograma


"A gente só sabe bem aquilo que não entende"
[Guimarães Rosa]


Queria lhe oferecer palavras bonitas antes da chegada à estação, para minimamente retribuir-lhe a geometria da beleza que você tem me apresentado nesses últimos dias. São vários lados de um poliedro, com um número de faces ou esquinas ainda a definir, que você me oferta como buquê de flores a cada encontro.

Mas hoje eu reconheço que perdi a razão. Perdi qualquer centelha de autocontrole em mim sobrevivente. A cabeça já não discerne mais o que é conotativo, denotativo, previsível ou pretensioso para lhe falar. Quem comanda o guidão nesta hora são meus sentimentos, num turbilhão que me coloca no pontilhado de um eletrocardiograma instável, cheio de picos e variações próprios de um paciente em estado crítico no leito.

Levo a vida assim, como uma parábola, mas não essas jesuíticas que procuram elevar o espírito para reflexão. As minhas parábolas são aquelas desenhadas no quadro-negro, durante as aulas de física do antigo segundo grau, em que o professor marcava, obrigatoriamente, os três principais pontos cartesianos: começo, cume e fim. Ou, no meu caso, nascimento, auge e derrocada da alma.

Grito, beijo, rio, gesticulo, corro, brado, buzino e choro, tudo na mesma proporção, tudo em tempos improváveis, tudo acontecendo à revelia da minha mente. No fim, termino sempre exaurido, como se tivesse desfilado em sete escolas de samba ininterruptamente num único dia de folia. A respiração se mantém sôfrega, com suspiros prolongados, porque na sua presença eu esqueço as leis biológicas e deixo o pulmão agir por conta própria, sem a minha vigilância. Meus olhos preferem se ater a outra pauta.

Isso tudo porque o amor resolveu bater à porta sem sobreaviso. Visita não previamente convidada, que apareceu sorrateira, quando eu já estava prestes a fazer uso do cadeado e anunciar a velha casa nos classificados. Não tive tempo de arrumar a sala, muito menos de reformar o seu quarto, que ainda gotejava as lágrimas da resignação. A memória em pó, que se acumulava pelos cantos, eu escondi depressa embaixo do tapete. Mas sua alergia à tristeza me fez limpar todo o chão para um pisar mais confortável de ambas as partes.

Hoje você está no mundo de lá, sem perspectivas de notícias ou sinais de fumaça, como dizem na minha terra. Nem um bilhete lembrei de lhe escrever antes do abraço derradeiro. Foi tudo tão rápido, tão fugaz, que eu me perdi nos poucos minutos que tinha para sofrer demais, falar demais, correr demais pela rua a tempo de chegar ao portão de embarque e dizer-lhe, por trás de toda minha euforia, que te amo demais. Até a volta.

23 dezembro, 2007

Chafurdar-se


“Uma tristeza que dá até alegria”
[Guimarães Rosa]



Hoje a lágrima que cai é do mundo
Que encharca o pé da gente
Que empapuça a meia do tênis
E que dá febre no corpo de repente

Hoje a lágrima que cai é do chão
Que empoça a grama
Que faz mais lama
E que suja a bainha mal feita da calça

Hoje a lágrima que cai é do sentidor
Que não tem capa de chuva
Que perdeu seu guarda-chuva
E que se chafurda em sua tristeza com o mínimo de alegria


22 dezembro, 2007

Vestido azul


No armário, estava a roupa mais bonita para a festa. A menina, ainda encantada com a caixinha de jóias que o avô consertara, volta e meia pegava o seu vestido azul, já engomado para a noite do seu bem. A primeira parada do dia era o espelho, que não era muito grande para se ter uma visão geral do corpo. O único a ela disponível era o da penteadeira, herança da mãe, que faleceu em seu parto. A menina, na verdade, era o legado materno mais precioso deixado entre os que ficaram. A menina tinha em seu móvel antigo, feito de madeira nobre, a verdadeira ponte entre a solidão e a saudade do colo.

A festa estava marcada para as 22h, mas tomou a cabeça da menina há semanas. Ela se resignava na mesa do jantar, só para não parecer chata em insistir num único assunto: o grande baile, em que todos da cidade estariam presentes. Mas quem a interessava era apenas uma pessoa: ele, um rapaz de boa índole, trabalhador honesto, cuidador dos seus afazeres e que, depois de dois ou três encontros furtivos na saída do colégio, lhe prometera juras, promessas e dívidas de amor eterno.

A noite, portanto, era mais que perfeita para rever seu amor. Era dia de reinventá-lo, porque a cada encontro, a cada risada, a cada beijo, era promovida uma estréia no coração da menina, que cintilava foguetes e rojões. O tapete para a porta do coração lhe fora estendido desde a primeira troca de olhares, com direito à faxina diária para tirar qualquer impressão de que estava por demais guardado na cômoda do quartinho.

A ocasião faz o ladrão – e também os amantes. Por isso, o vestido azul, que tinha lugar cativo no armário, ganhou destaque no cabideiro do quarto. Hora de esmerar a beleza: banho demorado, água quente para facilitar a permanência do sabão nos poros, perfume na medida certa para não provocar enjôos e pouca maquiagem. Para os cabelos, um cuidado especial: a menina se sentou defronte à penteadeira herdada da falecida mãe e escovava os cabelos, como quem paulatinamente esvaia, com os fios soltos ou mortos, cada mágoa que a vida lhe impusera antes de abrir a porta do seu amor.

A felicidade pedia trilha sonora e, no caso, a menina não titubeou em colocar a música da caixinha de jóias consertada pelo avô. Remetia-lhe imediatamente à infância, um tempo em que as lembranças se mantinham mais vivas que as da época da adolescência tumultuada, por não caminhar de mãos dadas com o tempo das outras colegas. No espelho, a segurança de que, pelo menos naquela noite, os fantasmas da sua voz não iriam rememorar qualquer centelha de tristeza que a abatia na cama, antes de levantar-se.

Com tudo preparado, só faltava mesmo colocar o vestido azul, quase embalsamado de tanta devoção. A menina se vestiu sozinha e fechou o zíper das costas com uma destreza rara para quem não tinha muita elasticidade nos braços. Ela esqueceu-se apenas de escolher os sapatos, de fundamental importância para o evento, que pedia trajes finos. Momento de tensão: ela não tinha os pares apropriados. Momento de crise: como ir à festa de sandálias rasteiras, as únicas que ela usava no seu dia a dia? Como ficar à altura do seu amor se lhe faltava uma plataforma qualquer para ampará-la? Como dançar agora no mundo, já que ela perdera seu próprio chão?

Não lhe restou outra alternativa a não ser sentar-se na cadeira defronte à penteadeira e, por um instante, segurar o choro para não borrar a maquiagem. Esforço em vão: a lágrima lhe descia o rosto sem precisar de convite para vir ao mundo. E o vestido azul, que nunca fora usado, não resistiu ao tanto de tempo que estava guardado no armário. Rasgou-se levemente na abertura do zíper. Era apertado demais para a menina, que não se deu conta de que crescera entre as paredes de seu quarto, ouvindo o dó-re-mi reiterante da caixinha de música, que tocava naquele momento de forma mais lenta que a habitual. O motor de corda que alimentava a música ainda não estava de todo reparado.

A pequenina bailarina, que rodopiava numa única ciranda sobre o palco da caixinha, havia se perdido na oficina do avô. E o amor que ela tinha pelo seu bem era demais para que a penteadeira suportasse. Resultado: quebrou-se junto com o vidro – junto com a herança do passado e a única possibilidade de ser apresentada ao futuro. No chão, ficaram apenas os cacos de uma tentativa de ser feliz, junto a alguns fios de cabelo caídos.

vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar

aí eu paro
tiro o sapato
e danço o resto da vida

[Chacal, "Rápido e rasteiro"]

21 dezembro, 2007

Licença do mundo


O lugar-comum logo avisa: isso tudo é fruto da inveja alheia. Eis aí um motivo para que manter hoje no escuro de mim mesmo. “Por favor, não me olhem por hoje. Quero pedir licença do mundo”, diz meu consciente.

Num vácuo hermeticamente fechado, sigo a tatear o fundo desse breu. Ou, pelo menos, uma superfície perecível qualquer, sobre a qual eu possa minimamente me apoiar ileso de uma enxurrada de sentimentos que me toma, todos trafegando em contramão, sentidos opostos etc.

E o mais grave: essa mesma enxurrada insiste em se apresentar com meu nome e sobrenome, saudando todos com a palavra “Prazer”. Inacreditável.

É permitido fumar



"E a gente vai fumando
Que, também, sem um cigarro
Ninguém segura esse rojão"
[Chico Buarque]



O Ministério da Saúde não cansa de advertir: fumar faz mal à saúde. O.K., já sabemos, notícia velha. Mas, em certos momentos, por mais politicamente incorreto que isso possa soar, um cigarro até que acalma os brios mais agitados. Confesso minha certa ignorância com a prática. Apesar do contato furtivo da adolescência, não sei tragar direito, tive bronquite quando criança e, volta e meia, uma breve falta de ar me acomete nas horas mais improváveis.

Há, contudo, certas horas da vida em que o cigarro se faz preciso, pelo menos qualquer um minimamente merecedor de tatear meus lábios. É quando a vida se converte numa agitação sem sobreaviso, um misto de surpresa, interrogação e tensão, provocado por desvios não-submetidos a uma anuência prévia entre as partes envolvidas.

Diante de uma ventania inesperada, surge num primeiro instante o choque. Não consigo fugir, logo assim de cara, da letargia da minha mente quando identifico os desvios que os planos tomaram. Depois, vem a tentativa de adaptabilidade: uma forma Poliana de seguir a vida, nem sempre ditada pelo o que fora combinado no telefone.

M
as o homem é falho, já ensinara o catolicismo do colégio, e nem sempre consegue evoluir rumo ao estágio de complacência e entendimento. Depois do choque e da incapacidade de se adaptar àquele novo meio, fica de concreto o ranço do egoísmo, que vocifera com o pequeno altruísta, sempre disposto a estender o seu tapete mais triunfal à vida e ao amor. Como eco, ouço com muito constrangimento a ausência do retorno esperado, diante de tanta gratidão que um dia lhe foi oferecida. E, por fim, o cansaço refletido pelo meu sono dos séculos.


***


Recorro ao cigarro - um só já me basta. Tento dissipar na fumaça expurgada um tanto da fúria ressentida por deixar-me levar pelo piloto automático dos acontecimentos. Isso porque nem sempre contar até dez, inspirando e expirando na mesma velocidade, é suficente para alcançar o primeiro estágio da calmaria.

Em seguida, vem a tosse, que ao menos sonoriza algumas palavras que, na hora, são grandes demais para ultrapassar o vácuo entre a mente, a garganta e a boca. E a lágrima que imediatamente cai é um exemplo de pura fisiologia humana: ela é vertida mais por força do pulmão do que por qualquer melindre do sentimento.

Mas muita coisa ainda fica sem se esvair no baforar de um cigarro, e só horas mais tarde, já sob o chuveiro morno, eu me dou conta disso. É, então, o momento de fazer da própria língua uma espécie de chibata postergada ou retroativa, que só depois vai tocar na frustração em não conseguir falar tudo na hora exata.

Desta forma, c
om o tempo, eu consigo concatenar todos os sentimentos que ficaram numa mesa de bar, quando meu único cigarro da noite se reduziu à guimba, apagada numa latinha de guaraná vazia.


19 dezembro, 2007

Tanto a dizer



Por que hoje tenho tanto a falar, mesmo que as palavras não soem tão confortáveis? A tristeza me surgiu hoje de manhã no quarto sem motivo aparente.

Mas não a questiono muito. Procuro aceitá-la com certa resignação e conformação. Não dizem por aí que estão felizes simplesmente por estarem felizes?

Então, por favor, deixem resplandecer a minha tristeza involuntária. Quem sabe eu esteja melhor quando, como diz minha mãe, “acordar para cuspir”?

Pelo menos, algo diferente sai da boca que não esse palavrório todo.


"De que o dia insiste em nascer
Mas o dia insiste em nascer
Pra ver deitar o novo"
[Los Hermanos]

Digitais


Nos dedos
As impressões da dor
É que o coração está farto já
E pediu licença por um instante dessa vida

Entra em cena a completude do corpo externo
Marcado em escarlate pela memória
É a lembrança do adolescente em gestação
Que não encontra mais a pureza dos seus sete anos

Nas mãos
As marcas que outrora
Estiveram grifadas num peito

No corpo
As linhas que um dia
Esperam ser reescritas

Ainda sim estendo a mão
Para oferecer-lhe educadamente
Os meus mais sinceros cumprimentos
Por, pelo menos, ter trocado o tinteiro da mesa

18 dezembro, 2007

Dois em um


Quero algo
Que valide a minha violência
Já não agüento mais conviver
Com essa agressividade clandestina
Aquela que reverbera por si
E me faz perceber a potência de uma dor

Quero algo
Que valide a minha fúria
Já não agüento mais sufocar o grito
E esconder as lágrimas secas pelo tempo

Quero algo
Que valide a minha tristeza
Já não consigo encontrar sua raiz
E também não sei responder mais às mesmas perguntas:
"O que houve?"
"Por que você está assim?"
"Aconteceu alguma coisa?"

Quero algo
Que valide o amor
É o único ungüento capaz de amansar os ânimos
E permitir que, em mim, conviva um único eu

Quero algo
Que me valide por completo
Já cansei de ser dois em um nesta vida


17 dezembro, 2007

Pede passagem


"Samba agoniza, mas não morre
Alguém sempre te socorre
Antes do suspiro derradeiro"
[Nelson Sargento]



São breves as palavras que constam nos tripés de pede-passagem de antigamente. Geralmente, as escolas de samba usavam esse recurso para apresentar o enredo e saudar, no começo do desfile, o público que iria prestigiar o evento e também os segmentos da imprensa presente na Avenida.

Hoje o pede-passagem é pouco usado no carnaval. As escolas de samba mal fazem referência ao seu nome, seu símbolo ou às suas cores no abre-alas, que é a primeira alegoria do desfile. Fica mais na lembrança dos puristas que prezam o bom e velho carnaval de outrora ("Velhos tempos que não voltam mais", cantam eles).


***

Na vida, cada qual tem sua própria folia, com suas alegrias, tristezas, intempéries, derrotas, vitórias e a sensação cíclica de que o fim anda logo ao lado de seu recomeço. Mas certas etapas, certos acontecimentos ou certas pessoas merecem um carnaval à parte.

Por isso, eu hoje dedico o meu amor, que pede passagem à vida e saúda a todos com um sorriso involuntário, sobre o qual eu dispenso qualquer controle.


[A você, a minha folia, a minha alegria
A você, a alegoria de uma vida renovada
A você, o meu passado sob nova perspectiva
A você, eu peço passagem
A você, dedico minha saudação]

14 dezembro, 2007

Abram as cortinas


:: Prólogo ::

Não quero ter a terrível limitação

De quem vive apenas do que é passível de fazer sentido.
Eu não: q
uero é uma verdade inventada.
[Clarice Lispector]




Três. Dois. Um.
Luzes se apagam. Segundos de silêncio
Hora de começar o espetáculo
As cortinas são abertas. Vermelhas, de veludo carmesim
Que correm para seus cantos em perfeita sincronia

No palco, está o protagonista do espetáculo
Somente uma pessoa em cena
Um monólogo de dramas ínfimos do cotidiano
Diálogos abundantes sobre emoções e angústias
Lembranças de pequenezas, bagatelas e reveses do passado

Eis que o observador se atenta na coxia
Escondido na sua penumbra
Aos detalhes mais comezinhos dos gestos no palco
Sublinhado pelo spot de luz

No cenário, o corpo que fala por si
E, escondida no canto, atrás da cortina
Está a consciência vestida de autoridade
É a projeção de uma atenção sempre esperada
Do aplauso sempre aguardado no final da festa
E das flores em consagração por mais uma noite

Rostos desconhecidos ocupam a platéia
Público variado que julga aquilo que foi dito no palco
De pé, eles se entreolham, sem compreender de todo
As reais intenções dessa vida descortinada
Que volta e meia pede para entrar em cartaz



FICHA TÉCNICA

Autor do espetáculo: A vida
Duração do espetáculo: Essa mesma vida
Nome do espetáculo: "Velha casa"
Direção: Ao léu e ao sabor dos acontecimentos
Elenco: Ainda em constante definição
Local: Em casa, no trabalho, no bar, no quarto ou à sombra da noite
Apresentações: Espetáculo itinerante, sem hora para começar

[Até que se encontre no roteiro
Uma vírgula ou um ponto parágrafo qualquer
Para preparar uma reestréia]


13 dezembro, 2007

Tic tac


:: "Time goes by so slowly" ::

Tempo
Não é passado, nem presente
São projeções que eu vivo, conjecturas
Arrependimentos que se desfazem nos olhos fechados
Voltas atrás que cabem exclusivamente às lembranças

Tempo
Não é ontem, talvez nem amanhã
"O que será o amanhã?
Responda quem puder"
Eu confesso minha pequeneza
Em não conseguir agora uma resposta de prontidão

Meu amanhã vive da memória
E também de uma certa culpa
Por não ter sido aquilo que almejaria ser hoje

Meu futuro, por ora, é do pretérito
Meu presente vive de frustração
Meu amanhã, queira Deus nem saber




[Desmontei meu despertador de corda
Para saber o que, de fato, é o tempo]

Por um instante


Por favor, não acendam a luz
Permitam-me por um instante
Sair de cena de forma abrupta
Pedir licença ao mundo que grita
E que clama todos a com ele também gritar

Por favor, não acendam a luz
Permitam-me por um instante
Percorrer o escuro que me habita
E ouvir entre os gritos de um vácuo
O silêncio de uma ausência anunciada

Por favor, não acendam a luz
Permitam-me por um instante
Escrever sem olhar a linha reta
E pensar em palavra por palavra
Dando corpo a um grito canalizado

Por favor, não acendam a luz
Permitam-me por um instante
Contemplar a minha angústia
De ainda crer que um dia vão saber
Onde esteve o disjuntor todo esse tempo

Enquanto a energia não volta
Por favor, não acendam a luz
Pelo menos por um instante
A tempo de poder encontrar
Uma vela qualquer por aqui

Por favor, não acendam a luz
Permitam-me por um instante ser confuso
Esboçar sentimentos sem lógica
Eu sei que eu me contradigo porque sou muitos
Para mim, basta a vela por perto

08 dezembro, 2007

Desopilar



“E uma flor exala a medo
Seu perfume como segredo
Na mais profunda solidão”
[Charles Baudelaire, “O azar”]



Nos livros eu busco uma palavra qualquer. É o momento de encontrar uma certa placidez, que costuma sair de cena nas horas mais improváveis. Sigo me desdobrando, esbaforido por aí no ramerrame cotidiano, e demanda certo tempo até eu conseguir me recompor de todo. Isso porque tenho consciência do meu ritmo parabólico de ser, que vibra no cume do vértice antes de perder força ladeira abaixo. E cada um sabe como cair no tempo que lhe for conveniente.

Sei que me esgueiro entre as minhas aflições, angústias e loucuras, fruto de desesperos esparsos e intermitentes, que eu tento comedir. É que certas dores ainda me encabulam. Só a luz noturna as conhece. Mas este medo (se é que uma palavra possa resumir esses muitos estados de espírito) eu posso revelar: ele é provocado por um sentimento novo que vem me visitar sem sobreaviso da portaria do prédio. Se eu não atendo logo, talvez esse meu novo sentir se desmanche na liquidez das minhas incertezas.

Por isso, é mais prudente abrir o portão e deixá-lo entrar. Só que antes eu peço a gentileza de me esperar por dez minutos. É só o tempo para que eu consiga me desopilar antes de abrir-lhe as portas desta velha casa que vos fala. Ainda preciso enxugar o riso molhado do meu choro invisível.

06 dezembro, 2007

Degelo


Agradeço o seu zelo
O seu carinho
E a sua atenção
Mas sinto-lhe informar
Hoje deles eu não careço mais

Não porque eu já o tenha de outra fonte
Mas é que eu dispenso a comiseração
Que vem embrulhada no pacote desse seu amor

Por favor,
Não me tenha por insensível
É que a frieza ainda me oferece lógica
A certos furacões da vida

Por isso, sinto-lhe informar
Mas esse seu mar de emoções
Hoje eu não careço mais

Prefiro ir me degelando em frações


04 dezembro, 2007

Calmante


O laço mais tenro se rompeu. Não tenho muito a dizer, talvez nem haja muito espaço para escutar. Diálogos para quê, se a autoridade quer avançar a grito, buscando alijar o passarinho que burilou suas próprias asas?

Tentei agir diferentemente desta vez. A voz estava plácida, mais serena e um pouco menos agressiva (muito embora o conceito de agressividade possa ser interpretado com diferentes juízos de valores). Mas a nobreza da minha postura, essa sim eu fiz questão de manter, em detrimento aos mandamentos que vão sendo apregoados de geração em geração.

Cresci com as paredes, vendo o sol pela janela. As decisões que com o tempo eu escolhi foram sem precisar perpassá-las por qualquer tipo de aval ou inquéritos. O amor eu encontrei mais tarde e quis compartilhar naquela primeira casa nossa. Pena que seus moradores preferiram o conforto dos seus calmantes, gozo fútil de quem só queria mesmo fugir do seu próprio câncer.

Sei que vocês vão continuar sentados sob o trono da frieza. Mas não se preocupem: não deixarei de passar por lá para reverenciá-los. Mas, por favor, só não esperem que eu suba sob suas ordens e tranque a porta do quarto, ameaçado pelo “Desça só amanhã”. Meu tênis já está lá fora, e estou calçando as meias. Estou à procura de uma nova velha casa para morar.

O respeito se manterá intacto, eu garanto. A todos nós, eu desejo o amor, fundamentalmente o amor, talvez o único que possa esboçar qualquer mudança nessa situação. Enquanto ele não bate às suas portas, continuem engolindo esse amor de vocês junto aos dois miligramas diários de Ocadil. Talvez isso lhes traga algum conforto.