14 julho, 2008

Estalar os dedos [ou “Dos sonhos”]



A qualquer sinal de mau presságio no peito, a menina não hesitava em estalar os dedos e fechar abruptamente os olhos. Era como sua avó havia lhe ensinado nos seus tempos imemoriais da infância, essa mesma que muitos de nós temos e que pede para ser retirada da nossa linha do tempo a fim de revivê-la, ao som de uma bela cantiga de roda.

Hoje, sem mais a presença da avó, a ciranda da menina foi interrompida pelo temor de encarar seus medos cara a cara. Não conseguia corporificar de certo a palavra “medo” a outras pessoas experientes no assunto. Daí a insistência em estalar de imediato os dedos, que irromperia com um único som a terrível sensação de estar mergulhada, só, em sua própria insegurança.

Ela queria vencer essa batalha usando sempre a mão direita, deixando a outra livre para qualquer eventualidade. A desconfiança morava no canto de trás de sua cabeça. Nem a própria sombra arriscava assustá-la perante os olhos de sua suspeição. Com seu pé também atrás com o mundo, a menina fazia do corpo sua sentinela, embora os olhos até hoje continuem vulneráveis a toda sorte de imagem até hoje a ela indecifrável.

Ela queria, sobretudo, manter a lembrança viva da sua avó, hoje residente nas reminiscências de uma memória embaçada pela idade. Por isso, em vez de acender uma vela, ela recorria aos ensinamentos de criança para se iluminar dentro do quarto escuro. Era a forma de a menina recuperar a luz própria aconhegando-se, ainda que em memória, na velha senhora de todas as noites, antes de acordar para mais uma vez enfrentar o mal que a cada dia nos basta nessa vida.

13 julho, 2008

Origami



Nossa história foi tão bonita que, mesmo hoje reduzida, se manteve na memória em corpo não-abstrato, como esses rascunhos amassados que jogamos na lata do lixo depois de horas tentando entender o amor sentado em frente à máquina de escrever. Ele mais parecia um passarinho, mas com traços e forma retilíneos do que os abaulados que se costumam ver por aí.

Se era um pássaro belo ou não, aí já não sou a pessoa mais indicada para dizer. Porque só eu sei como o processo de gestação dele foi demais dolorido aqui dentro. Sim, ele nasceu de mim e hoje vem à janela da velha casa se apresentar ao mundo, saltando deste ninho que vos fala e vai contar aos senhores como tudo começou.

No início, era o branco. Uma superfície nua, apta para que testemunhássemos, com lápis ou caneta, nossa bela história que se iniciava. A intenção era das mais valorosas, mas, surpreendentemente, as escritas começaram a trepidar das linhas retas à revelia das quatro mãos que assinavam aquela obra. É que o caminho, de repente, ficou tortuoso para nós dois, com buracos e sobressaltos a ultrapassar. Nessas horas, não há mão firme que sustente a harmonia da letra.

Bastava, no entanto, virar a página para lá estar outra folha, pronta para atestar essa nova vida nossa. Em vão. Algumas folhas molharam com as chuvas, outras se esvaíram com a ventania que nos pegava de assalto dentro. Restou só uma folinha, presa no espiral do caderno, mas que não dava conta de tanta coisa a ser ainda escrita por nós dois.


Eu, pelo menos, tinha muito a dizer da gente e, juro, me esforcei além da conta para ver se encontrava novas palavras e sensações que nos tirasse daquele looping da montanha-russa que cismava em rodar nossos corpos num único eixo. Mas as rasuras ainda insistiam em aparecer. E confesso: os rabiscos me incomodam por sua natureza inesperada. Além disso, deles eu já guardava a lembrança do caderno magro e das sobras que sempre ficam dentro do espiral, único esqueleto que parecia sustentar nosso amor.

Decidi, então, arrancar a folha derradeira e, cuidadosamente, dobrar os erros, as decepções e as frustrações inscritas no papel. Era a forma mais prática que encontrei para encobrir o que saltava aos meus olhos e que eu já não agüentava mais ver. Queria vislumbrar o poder da transformação e não mais mutilar, rasgando um pedaço aqui e outro acolá, a memória da nossa história.

Também não dava para desdobrar mais do que já havíamos feito meses atrás, senão aquele pobre papel não suportaria as tantas marcas nele inscritas. E, de dobradura em dobradura, com o tempo fui reduzindo a folha que restou da nossa história em um corpo só. Era o tal passarinho que em mim nascia e que hoje quer alçar vôo, só para ver se consegue sentir a leveza de um céu que, mesmo hoje partido ao meio, insiste em querer brilhar acima das minhas próprias tempestades.

Nobre a intenção. Quem sabe assim, passarolando, ele encontra seu próprio bando nessa vida.

10 julho, 2008

Penduricalho



Dizem, seu moço, que a gente tem às vezes que se armar frente às intempéries que surgem na nossa vida. Eu até guardo uma lataria velha que me fazia proteger desse mundo doido, mas a coitada acabou enferrujando, sabe. Pois é, eu peguei toda sorte de chuva nessa vida minha de briguento e, de tanto me molhar por aí afora, acabei estragando o único escudo que me acobertou durante todos esses anos. Também, era cada roubada que só contando uma a uma mesmo pro senhor, mas deixemos isso prum outro dia.

Bem que minha mãe falava: “Não deixa sua armadura tão exposta assim ao tempo, meu filho. Me dê ela aqui, vai”, mas cadê que que eu escutava a Dona Bete? Ela gostava de ver minha prata tinindo de lustrada, mas eu relaxei mesmo com a pobrezinha. Agora Inês é morta e a armadura, perigosa. Sim, perigosa, não acredita? Arriscado até eu pegar doença com aquela ferrugem toda, Ave Maria, quero não. Um menino lá da vizinhança morreu de uma infelicidade dessa, credo em cruz, gosto nem de pensar.

Eu, pelo menos, sigo aí, vivinho da Silva. Mas não pense o senhor que, mesmo sem a armadura, eu virei um velho frangalho, vulnerável ao mundo, fracote que só. Descobri bem um jeito de me livrar dessas maleitas que insistem em nos chatear. Quero ver o senhor adivinhar como eu me resguardo, seu moço. O quê? Ficar trancado dentro de casa? Não, senhor, não precisa. Basta fazer isso aqui, ó: está vendo esse negocinho pregado no meu peito? Então, é um penduricalho que eu peguei na gaveta de minha mãe e passei a usar aqui comigo.

Ele vive pendurado em mim, mas quase ninguém vê. Só mesmo pra quem eu mostro ou, claro, quem quer atingir de cheio esse meu peito. Não querem me deixar em paz, é uma verdade, mas eles estão é lascados comigo. Porque quando vão mirar o alvo, em vez de atirar, ficam titubeando pra lá e pra cá, no vai-e-vem do penduricalho. Eu, claro, também faço o favor de me mexer bastante, que não sou besta, não é mesmo? E na hora de acertar, o danado do tiro passa longe de mim, de tão tonto que o trouxa ficou.

Não é fantástico? Pois foi meu pai que me ensinou. Isso mesmo. Eita homem de sabedoria! Eu lembro que, ainda garoto de calças curtas, ele me leu uma coisa no pé da cama que ficou marcada até hoje nessa minha cacholeta anuviada: “O amor só mente pra dizer maior verdade”.

Hoje posso não mais vestir a armadura de outrora, mas quem disse que estou à mercê da sorte?

09 julho, 2008

Abrir mão


[Esta é uma carta escrita no impulso, no peso e na irritação]



“Estou cansado”. Não sei quantas vezes tenho dito isso ao longo desse tempo. Talvez seja uma frase comum de dois, mas hoje quero apenas pensar em uma parte dessa vida que decidi há oito meses fracionar com você. E repito: estou cansado, desta vez sem aspas, para ver se consigo capturar o momento, o instante de uma exasperação que me toma de assalto como agora.

Cansei de te fazer de protagonista e de me fazer coadjuvante. Cansei de ter que dirigir o nosso espetáculo, enquanto o seu você deixa para qualquer um intervir nas marcações de cena. Cansei de acreditar que seu texto é autoral quando, na verdade, quem o escreve parece carecer de personalidade. Eu, definitivamente, cansei de tentar consertar os trilhos do nosso palco para ver se a cortina não se fecha de todo ou de vez.

Durante esse tempo juntos, eu tenho guardado algumas imagens dentro de um relicário que cultuo aqui na velha casa. Uma delas é a de uma mão aberta, que sustenta um coração. Às vezes, preciso tirá-lo do peito para ver se o coitado pega um pouco de ar. É que, por ser tão grande, tão inflado, tão apaixonado, o corpo já não lhe basta e o músculo pede mais espaço. E eu não hesitei em abrir mão. De muita coisa. Em certos momentos, de mim até.

Podem atirar pedras, mas eu não me envergonho de dizer: prefiro ter a mão aberta para o amor a manter o punho cerrado pela impaciência de não esperar tudo se resolver, como apregoamos juntos todo fim de semana. Chega uma hora, porém, que ficar numa só posição entedia o corpo. O estático em mim dói. Eu busco movimento, embora saiba que eu preciso mesmo é de ser embalado pelas suas pernas, ser levado um pouco por você, deixar-me solto para te ver dirigindo meu guidão.

Mas nem dá tempo de fechar os olhos e imaginar o caminho perfeito para esse passeio. Mal vislumbro e chega um vento qualquer para desequilibrar a bicicleta do caminho que projetei para nós dois. E você nem tem a dignidade de tomar a iniciativa de se levantar e seguir adiante comigo. Prefere se sufocar em seu próprio sopro.

Em poucas e repetitivas palavras: não sei se estou disposto a abrir tanto a mão mais. Estou cansado. Inclusive de ter que te falar tudo isso mais uma vez.