Saia da velha casa agora. Você não fez valer o acordo de um ano atrás, quando nos demos as mãos para sincronizar cada passo das pernas. As minhas foram além do que o passo pensou em alcançar, enquanto as suas insistiram em se cruzar, mesmo diante do esforço nato de querer vencer e persistir na luta. Você não teve a hombridade de seguir adiante num caminho que se tornou favorável depois de todo vento desferido para ver você reconquistando seu mérito. Agora não queira me alcançar mais. Já alçei vôo para um qualquer lugar.
Hoje apenas a frieza é que tem me assustado as noites. Tem chovido demais em mim nesses últimos dias, mas não faço mais questão de estar contigo na janela esperando o alaranjado do céu indicar um novo tempo. Vivo a intensa tempestade que grita aqui dentro, mas o guarda-chuva que cobre outras dores não deixa mais a água escoar pela pele, que dirá pelos olhos.
Ainda assim, fica tudo meio seco, meio tapado, meio acumulado, meio embolorado. Até chegar a hora do banho e poder, enfim, forçar alguma lágrima a cair no rosto já molhado pela derrota de ter ferido um compromisso comigo mesmo: não mais te ajudar. Prefiro, ainda que sem mais notícias, saber que você é capaz de dar seus próprios passos sem precisar mais dos meus pés. Ou quem sabe das minhas costas, tão depositárias da sua inércia. E, claro, também da minha estupidez em ter acreditado que as coisas poderiam mudar. Vã ilusão isso tudo. Por isso, eu repito de voz altiva, de sombrancelha cerrada e de dedo em riste:
- Saia da velha casa agora.
[Texto escrito no impulso, na frieza e na tristeza, antes de o banho servir de ungüento para apaziguar as feridas]