22 julho, 2009

A você -- só pra você

Fronteira é algo que se pede respeito. Não se pode chegar de mansinho, na ponta do pé, e querer do nada fincar sua bandeira no meu território. Alto lá! É preciso, antes de tudo, haver negociação. Seu espaço termina onde o meu começa, cara pálida, simples assim, sem eira nem beira. Por isso, esqueça sua cavalaria de lado, ela em nada me afronta. Os rios do lado de cá podem ainda escorrer sangue, mas eu sei muito bem como me defender das futuras feridas provocadas por terceiros. Deu agora pra entender por que não gosto de invasão nem de gente invasiva? Fica na sua que é melhor. E entenda de uma vez por todas: nunca fui tão claro em toda minha vida.

Maior verdade

"A gente só mente para dizer maior verdade". A frase é mais ou menos essa, mas só agora me dei conta de seu peso real sobre mim. Eu menti -- para mim mesmo. E só agora me dei conta. Menti caindo em esparrelas, menti dizendo que acreditava, menti acreditando que essa era a hora. Que nada. Foi tudo com os burros n'água, como dizia meu saudoso avô. Foram-se os anéis, os dedos, as falanges, qualquer forma de poder segurar a verdadeira chance de, finalmente, dizer "Ufa" e seguir os dias com um pouco mais de tranquilidade. A vida me tem sido calma, é verdade, mas bem que eu queria afrouxar mais o sorriso e ter as batidas do peito mais espontâneas -- por ora, elas têm ocorrido de forma pragmática. Bombeiam o rame-rame do seu dia a dia. Queria também afrouxar os ombros, as pernas, os braços, o corpo. Em outra leitura, me entregar. Ainda acredito que um dia seja possível. É verdade: eu ainda minto para mim mesmo. Só para ver se um dia isso se transforma -- e não somente diz -- numa maior verdade.

08 julho, 2009

Feliz

Hoje foi dia de análise. Descobrimos juntos -- eu e a analista -- que eu estou infeliz. Ela me alertou: "Vou lhe fazer uma revelação séria. Qualquer coisa, me liga". Não vou precisar, Ângela. Está tudo bem. Foi, de certa forma, aliviante constatar isso. Precisava dar esse grito, que acabou saindo por você. Não tem problema: certas horas, você sou eu mesmo, não é -- ou para quem mais eu contaria minhas intimidades? Foi um alívio. Estava acostumado a ser infeliz. Difícil era encarar a ideia contrária: de ser feliz, mesmo querendo muito. Descobri que provocava o desejo dessa felicidade, mas me era clandestina. Eu renegava a troco, talvez, da comodidade de continuar à deriva na lagoa. A água já estava turva, e eu nem me dei conta. Os olhos cegam para a mesmice do tempo. Precisava de um sacolejo. E você, cara Ângela, me ajudou. Por isso saí bem hoje da análise, mesmo constatando a infelicidade que em mim ainda fixou endereço. Estou surpreendentemente feliz. E, claro, disposto a dar a volta por cima, ainda que seja difícil a ideia de encarar o que me é novo. Sim, meus amigos: ser feliz é privilégio para poucos. Para mim, ainda é sinônimo de novidade. Mas daqui a pouco vira notícia velha, podem apostar.

01 julho, 2009

Boi pintado


Dizem muito aqui no campo que não se deve andar no lombo de boi pintado. É bicho danado de traçoeiro, não vale muita coisa. A calma que ele apresenta no campo não passa de enganação: vá se atrever a montar pra ver se o bicho não se enfurece? Eu nem arrisco tentar, deixa ele lá quieto. Coitado, deve ficar triste: um boi pintado e incompreendido. Vive sozinho, isolado no campo, a mastigar sempre a mesma comida. Está atado à rotina. Carece de afago, de cuidado. Talvez por não ter tido isso desde os tempos de bezerrinho que é ficou assim, bravo, parecendo um touro daqueles dos filmes. E duvido que dêem oportunidade do pobrezinho mostrar um pouco de calmaria.



"Um boi preto, um boi pintado,
cada um tem sua cor.
Cada coração um jeito
De mostrar o seu amor"

[Guimarães Rosa, em "Sagarana"]

Interseção


Certos momentos eu me apresento de forma muito rude ao mundo -- tática defensiva de quem teve de aprender a se cercar de arame farpado pelo corpo. A verdade é que meu coração é mole demais, acreditem. E grande também. Poucas pessoas é que a ele têm acesso ultimamente. Amor hoje, para mim, pede cancela -- só dele participa quem souber entrar. Pede delicadeza, sensibilidade também. Tudo para entender que o sentimento, certas horas, é atemporal -- aquele que faz história ao fincar a bandeira na interseção dos círculos, respeitando a fronteira de ambas as partes. Essa marca não dá para apagar. Vira comum de dois -- mesmo se esses dois hoje estiverem distantes, cada qual no seu quadrado, cada qual com sua aliança debaixo do braço à espera de novas oportunidades de união. De interseção. De ligação com o mundo.