22 dezembro, 2007

Vestido azul


No armário, estava a roupa mais bonita para a festa. A menina, ainda encantada com a caixinha de jóias que o avô consertara, volta e meia pegava o seu vestido azul, já engomado para a noite do seu bem. A primeira parada do dia era o espelho, que não era muito grande para se ter uma visão geral do corpo. O único a ela disponível era o da penteadeira, herança da mãe, que faleceu em seu parto. A menina, na verdade, era o legado materno mais precioso deixado entre os que ficaram. A menina tinha em seu móvel antigo, feito de madeira nobre, a verdadeira ponte entre a solidão e a saudade do colo.

A festa estava marcada para as 22h, mas tomou a cabeça da menina há semanas. Ela se resignava na mesa do jantar, só para não parecer chata em insistir num único assunto: o grande baile, em que todos da cidade estariam presentes. Mas quem a interessava era apenas uma pessoa: ele, um rapaz de boa índole, trabalhador honesto, cuidador dos seus afazeres e que, depois de dois ou três encontros furtivos na saída do colégio, lhe prometera juras, promessas e dívidas de amor eterno.

A noite, portanto, era mais que perfeita para rever seu amor. Era dia de reinventá-lo, porque a cada encontro, a cada risada, a cada beijo, era promovida uma estréia no coração da menina, que cintilava foguetes e rojões. O tapete para a porta do coração lhe fora estendido desde a primeira troca de olhares, com direito à faxina diária para tirar qualquer impressão de que estava por demais guardado na cômoda do quartinho.

A ocasião faz o ladrão – e também os amantes. Por isso, o vestido azul, que tinha lugar cativo no armário, ganhou destaque no cabideiro do quarto. Hora de esmerar a beleza: banho demorado, água quente para facilitar a permanência do sabão nos poros, perfume na medida certa para não provocar enjôos e pouca maquiagem. Para os cabelos, um cuidado especial: a menina se sentou defronte à penteadeira herdada da falecida mãe e escovava os cabelos, como quem paulatinamente esvaia, com os fios soltos ou mortos, cada mágoa que a vida lhe impusera antes de abrir a porta do seu amor.

A felicidade pedia trilha sonora e, no caso, a menina não titubeou em colocar a música da caixinha de jóias consertada pelo avô. Remetia-lhe imediatamente à infância, um tempo em que as lembranças se mantinham mais vivas que as da época da adolescência tumultuada, por não caminhar de mãos dadas com o tempo das outras colegas. No espelho, a segurança de que, pelo menos naquela noite, os fantasmas da sua voz não iriam rememorar qualquer centelha de tristeza que a abatia na cama, antes de levantar-se.

Com tudo preparado, só faltava mesmo colocar o vestido azul, quase embalsamado de tanta devoção. A menina se vestiu sozinha e fechou o zíper das costas com uma destreza rara para quem não tinha muita elasticidade nos braços. Ela esqueceu-se apenas de escolher os sapatos, de fundamental importância para o evento, que pedia trajes finos. Momento de tensão: ela não tinha os pares apropriados. Momento de crise: como ir à festa de sandálias rasteiras, as únicas que ela usava no seu dia a dia? Como ficar à altura do seu amor se lhe faltava uma plataforma qualquer para ampará-la? Como dançar agora no mundo, já que ela perdera seu próprio chão?

Não lhe restou outra alternativa a não ser sentar-se na cadeira defronte à penteadeira e, por um instante, segurar o choro para não borrar a maquiagem. Esforço em vão: a lágrima lhe descia o rosto sem precisar de convite para vir ao mundo. E o vestido azul, que nunca fora usado, não resistiu ao tanto de tempo que estava guardado no armário. Rasgou-se levemente na abertura do zíper. Era apertado demais para a menina, que não se deu conta de que crescera entre as paredes de seu quarto, ouvindo o dó-re-mi reiterante da caixinha de música, que tocava naquele momento de forma mais lenta que a habitual. O motor de corda que alimentava a música ainda não estava de todo reparado.

A pequenina bailarina, que rodopiava numa única ciranda sobre o palco da caixinha, havia se perdido na oficina do avô. E o amor que ela tinha pelo seu bem era demais para que a penteadeira suportasse. Resultado: quebrou-se junto com o vidro – junto com a herança do passado e a única possibilidade de ser apresentada ao futuro. No chão, ficaram apenas os cacos de uma tentativa de ser feliz, junto a alguns fios de cabelo caídos.

vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar

aí eu paro
tiro o sapato
e danço o resto da vida

[Chacal, "Rápido e rasteiro"]

2 comentários:

Bárbara Matias disse...

Ei Daniel!!!

Muito obrigada por me falar desse seu texto! Maravilhoso...

Sua vida se quebrou sem os sapatos.. e o vestido não era mais tão devotado.. pois não mais se bastava, ainda faltavam os bonitos sapatos. E sem todos eles a maquiagem foi em vão.. a esperança foi em vão... não veria mais seu amor!

Gostei muito.. um dos melhores textos que li!

Ah.. eu te linkei... ok?? já era pra eu ter linkado antes, e, na verdade, achei que já tinha feito.. só essa semana fui perceber. Desculpe!
Bjinhos... É sempre um prazer vir por aqui...

FlaM disse...

Ai que triste!!! e que esmero na construção desse texto, querido! beijinho, Flávia