04 março, 2008

Migalhas



Os dias têm me sido de poucas palavras e mais contemplação. O olhar anda um tanto avoado, mesmo sem portar as devidas asas para migrar rumo ao regozijo da alma. E o foco se dirige a cenas de uma janela entreaberta, como as poucas migalhas que caíram do lanche naquela nossa última ceia.

Quando criança, eu sempre gostei de comer as migalhas que se desgarravam do pão rumo à toalha quadriculada posta na mesa. Com o dedão polegar, todas elas eram devidamente agrupadas, formando religiosamente um corpo, uma função para reexistirem no mundo.

Comer as migalhas caídas à mesa tinha, para mim, um quê de traquinagem própria da infância. Aquela que é imediatamente escondida pelo olho inquieto do menino que queria blefar sua travessura. E a minha tia, sempre porta-estandarte dos bons costumes, não hesitava em repreender o pequeno na ânsia de encaixá-lo novamente ao caminho do comportamento retilíneo.

Passadas tantas curvas desse tempo, o pão nosso de cada dia ganha na chapa um sopro qualquer de vida nova. Coisa breve, quase nada. Já não tenho mais paciência de esperar por certas perfeições. Mas, ainda sim, as migalhas permanecem ainda à mesa, como aquelas que você deixou no nosso último encontro. Elas ainda estavam lá, organizadas na sua própria desconexão, cada qual brilhando independente e solitária sobre o prato.

Tempos atrás, eu até teria disposição de agrupá-las num saquinho de memórias, para apostar na sorte e ver qual forma tomariam depois os farelos de minha memória. Se não quisessem configurar um corpo qualquer, eu fazia como João e Maria: colocava, uma a uma, as migalhas enfileiradas no meu eterno caminho de tijolos amarelos para, quem sabe um dia, reencontrar aquela criança de outrora, que se divertia com o dedo na boca prendendo o sorriso frouxo de sua infância.

Hoje não. No meu estado de olhar contemplativo, me causa até certa alegria em ver no que você demonstra ser a cada encontro nosso: uma migalhinha de gente, indigna de dar as mãos às outras caídas no seu prato. Que a minha tia não me repreenda dessa vez.


16 comentários:

Anônimo disse...

Ai, Daniel. Achei nostálgico, melancólico e lindo, tudo junto!
Um desabafo e um desafio também. Se eu fosse a pessoa a quem se refere e lesse seu texto, eu quereria crescer e deixar de ser migalha, tornar-me pão-nosso-de-cada-dia.

Lindo, demais!
Parabéns!

Beijocas.

Anonimo disse...

Belo texto Daniel, gostei da analogia entre as migalhas da infância e as metafóricas do agora, sendo auqelas mágicas e as de hoje melancólicas. Não podemos nos contentar com migalhas, pois elas só instigando o gosto, mas não matam a fome.

Abraços.

Toni disse...

Tocante.

Entendo perfeitamente que você não tenha mais paciência em recolher as migalhas, eu também desejo o pão inteiro, daqueles firmes, que não se desfazem a toa...

Mas eu "Já não tenho mais paciência de esperar por certas perfeições."

Solução? Não sei amigo, não sei.
Me empresta a sua tia?

Beijo.

Marco Antonio Araujo disse...

É impossível não associar sua tia a essas pessoas que tentam nos privar de bons momentos e ofuscar nossos sonhos. Mas somos fortes e não deixamos ninguém nos privar da contemplação do espetáculo-vida.

Bárbara Matias disse...

Adorei a mistura do pao-nosso-de- cada-dia com João e Maria, com a ceia, com as migalhas à mesa.
Com a migalhinha de gente.

Num é que o olhar contemplativo diz muito de como estou hoje? vim assim pra casa... e cheguei assim aqui. E a gente começa a ver, a enxergar.. que as migalhinhas de pão ainda estão por ai.. e que nosso ato nada retilineo se repete... não que juntemos de novo as migalhinhas, como na infancia.... mas ainda as observamos e percebemos sua existencia.

Maravilhoso... não seria capaz de escrever algo tão rico e tão reflexivo.

Gostei de ver o toque de vida e de resgate, (está ai denovo a traquitana!)(rs).. gosto demais dessa caracteristica do seu blog!

Bjim.

Marco Antonio Araujo disse...

Você acredita que não é a ninguém em especial? Eu estava sentindo uma raiva no coração... e foi uma forma de despejar isso em palavras...

Anônimo disse...

Texto adorável de se ler...
Passado e presente tão próximos e tão distantes ao mesmo tempo.
Saboreei cada palavra e, por instantes, voltei a ser criança.

"(...)poucas palavras e mais contemplação"
meus dias também têm sido assim!

um beijo

J.Machado disse...

Migalhas, só se for as de pão mesmo caro amigo. Não matam fome e a velha traquitana espalha com facilidade.
Pão inteiro, ultimamente só em padaria.
Essas coisas dão uma canseira!
...
Grande abraço!

Renato Ziggy disse...

As migalhas, em seus texto, remetem a várias coisas pra mim. Ao simples, ao espontâneo e puril, ao ínfimo, ao indigno, ao resquício de um passado... O lance é: como eu lido com as migalhas? Como selecioná-la? Seriam todas elas necessárias no meu dedo polegar?

"Hoje não. No meu estado de olhar contemplativo, me causa até certa alegria em ver no que você demonstra ser a cada encontro nosso: uma migalhinha de gente, indigna de dar as mãos às outras caídas no seu prato. Que a minha tia não me repreenda dessa vez."

Amigo, quanto a esse trecho, eu tive uma outra interpretação muito pervertida, mas é tão maliciosa que te falo outra hora. HUAHUAHUAHUA! De repente, se você ler, vai entender... Desculpa, mas é que eu sou non sense mesmo. A Babi tá aqui morrendo de rir da minha insanidade periódica.

Adorei seu texto! Abraços!

Bianca Feijó disse...

é, a velha infância sempre nos leva as curvas do tempo passado, e vc soube fazer disso um belo texto.
Hoje adultos não somos repreendidos pelas mesmas atitudes do passado.
Onde esta a diferença?
Gostei muito da sua Velha Casa.
beijos!

Fragmentos Betty Martins disse...

ola______________Daniel




parabéns pelo texto_____está excelente!



como todo o "espaço"





________voltarei se não te importares:))











beijO c/ carinhO

Anônimo disse...

Tava olhando teu blog e gostei de muitas coisas, inclusive do last fm [eu tenho um cadastro lá, mas não sei usar, burra burra burra...]

Peço desculpas porque tu fostes lá faz um tempão, me linkaste, eu te linkei e só tou vindo aqui agoras.
Beejoo

Filipe Garcia disse...

"as migalhas permanecem ainda à mesa, como aquelas que você deixou no nosso último encontro."

que maneira sutil e terna de falar sobre lembranças! Ao ler seu texto, me senti sereno e á procura de certas migalhas perdidas por aí. A imagem do menino sentado á mesa mexeu com nosso imaginário (dos leitores), trazendo á memória uma época cheia de farelos deliciosos.

você é fantástico no que escreve.
parabéns e abraços.

Luis Fernando disse...

Muito bom! gostei muito! muito boa essa sua forma de comparar as pessoas e sentimentos a migalhas. seus ultimos versos são os melhores na minha opinião. ah, memórias, migalhas, que se nós juntarmos, formam um todo. abraço!

[P] disse...

Moço Daniel, esta foi a única vez em que as "migalhas" me tocaram: lendo teu texto. Sou meio avessa à elas...

=**

ps: "quase vizinha" me fez pensar no seguinte: devo ou não devo colocar o tal cd no volume máximo para compartilhar contigo tudo o que ele contém? podemos programar uma espécie de "cd-despertador" para o seu sono :)

Pedro Gabriel disse...

Olá Daniel,
poxa muito obrigado pela visita e pelas palavras. Ainda estou conhecendo seu blog, estou explorando. Posso dizer que as primeiras impressões foram ótimas. Gostei do ambiente do teu blog: é receptivo. Dá vontade de ficar e ler. Vou continuar explorando.

grande abraço,
e é claro que pode me linkar.
Eu também queria linkar, mas confesso que não aprendi ainda como faz isso hahaha

;-)