10 julho, 2008

Penduricalho



Dizem, seu moço, que a gente tem às vezes que se armar frente às intempéries que surgem na nossa vida. Eu até guardo uma lataria velha que me fazia proteger desse mundo doido, mas a coitada acabou enferrujando, sabe. Pois é, eu peguei toda sorte de chuva nessa vida minha de briguento e, de tanto me molhar por aí afora, acabei estragando o único escudo que me acobertou durante todos esses anos. Também, era cada roubada que só contando uma a uma mesmo pro senhor, mas deixemos isso prum outro dia.

Bem que minha mãe falava: “Não deixa sua armadura tão exposta assim ao tempo, meu filho. Me dê ela aqui, vai”, mas cadê que que eu escutava a Dona Bete? Ela gostava de ver minha prata tinindo de lustrada, mas eu relaxei mesmo com a pobrezinha. Agora Inês é morta e a armadura, perigosa. Sim, perigosa, não acredita? Arriscado até eu pegar doença com aquela ferrugem toda, Ave Maria, quero não. Um menino lá da vizinhança morreu de uma infelicidade dessa, credo em cruz, gosto nem de pensar.

Eu, pelo menos, sigo aí, vivinho da Silva. Mas não pense o senhor que, mesmo sem a armadura, eu virei um velho frangalho, vulnerável ao mundo, fracote que só. Descobri bem um jeito de me livrar dessas maleitas que insistem em nos chatear. Quero ver o senhor adivinhar como eu me resguardo, seu moço. O quê? Ficar trancado dentro de casa? Não, senhor, não precisa. Basta fazer isso aqui, ó: está vendo esse negocinho pregado no meu peito? Então, é um penduricalho que eu peguei na gaveta de minha mãe e passei a usar aqui comigo.

Ele vive pendurado em mim, mas quase ninguém vê. Só mesmo pra quem eu mostro ou, claro, quem quer atingir de cheio esse meu peito. Não querem me deixar em paz, é uma verdade, mas eles estão é lascados comigo. Porque quando vão mirar o alvo, em vez de atirar, ficam titubeando pra lá e pra cá, no vai-e-vem do penduricalho. Eu, claro, também faço o favor de me mexer bastante, que não sou besta, não é mesmo? E na hora de acertar, o danado do tiro passa longe de mim, de tão tonto que o trouxa ficou.

Não é fantástico? Pois foi meu pai que me ensinou. Isso mesmo. Eita homem de sabedoria! Eu lembro que, ainda garoto de calças curtas, ele me leu uma coisa no pé da cama que ficou marcada até hoje nessa minha cacholeta anuviada: “O amor só mente pra dizer maior verdade”.

Hoje posso não mais vestir a armadura de outrora, mas quem disse que estou à mercê da sorte?

15 comentários:

:: Daniel :: disse...

Amigos,

A frase é do Guimarães Rosa. E essa técnica dos penduricalhos era usada, de verdade, por samurais. Era assim que ele despistava os inimigos.

Abs.,
Daniel

Anônimo disse...

Armadura, escudo, amuleto, todos nós, em algum momento da vida (ou, quem sabe, a vida toda) tivemos que recorrer a artifícios que prometiam uma proteção maior frente aos embates da vida. Existe uma época na vida em que nos recusamos a usá-los, deixando que sentimentos e emoções nos cheguem na sua essência mais profunda, mas aos poucos tomamos consciência da utilidade de tais apetrechos. E é aí que passamos a perder aquela espontaneidade que deveria sempre caracterizar nossos atos frente à vida.

Escelente esta postagem, amigo, bem como a anterior, onde falas com mestria sobre esse cansaço que muitas vezes permeia os relacionamentos onde apenas um luta pela sua sobrevivência, onde os olhares não mais se fazem para o mesmo horizonte, e tudo vai ficando esvaziado de sentido, e a busca de um melhor entrosamento cessa de vez.

Gosto dos teus textos! Eles nos fazem refletir sobre nosso posicionamento frente à vida.

Ficam flores e estrelas entrelaçando sorrisos no teu caminhar e um beijo no teu coração.

Expondo-me disse...

Tem vezes que eu acho que mandei minha armadura para a lavanderia e esqueci de buscá-la! tem dias que estou sim à mercê de qualquer um, inclusive dos que magoam! Acho que meu 'muro de contenção' de 'maus intencionados' é tão frágil...com muita frequência eles me acertam em cheio, no alvo! Abraços by Exposta

Dois Rios disse...

Excelente texto, Daniel.
De fato vivemos num eterno dilema entre baixar as armas ou deixá-las apontadas ao sinal da primeira ameaça.
Bj.

Poeta Mauro Rocha disse...

Ótimo!! Você precisa é publicar um livro!!

Um abraço!!!

Sabrina disse...

lindo, lindo texto.
:)

Toni disse...

Queridão!

Que delícia esse post!
Parece que estou ouvindo você! rs

Gosto da técnica dos peduricalhos, vou tentar, juro. Mas periga eu mesmo ficar ali hipnotizado pelo balanço!!! Pois é, mal de pessoas como nós, de cacholeta anuviada...

Bom demais voltar a essa casa!

Abraço.

Bárbara M.P. disse...

Adoro aqui.

Beautiful Stranger disse...

e dessas armaduras, escudos e tais amuletos, não sei se vou precisar, mas guardarei, essa vida está realmente maluca...

;)
http://strangerbeautiful.blogspot.com/

Flávia disse...

"O amor só mente pra dizer maior verdade".

Quer verdade maior do que essa?

Amei o texto.

Beijos ;)

Anônimo disse...

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Olá!
Bonito teu texto, de verdade!
Não é nem preciso dizer o que as palavras acima confirmam.
Tenho andado à mercê da sorte!
Palavras fortes estas tuas.
Um bjo grande, moço.
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Adri disse...

Adorei, preciso rever e quem sabe deixar a armadura um pouco de lado...

Auréola Branca disse...

O penduricalho desse senhor de lataria velha é tão, ou mais, importante, que o mundo inteiro pra mim. Pois sei que, tão longo, minha lataria também enferrujará e nada terei, a não ser a esperança de um acessório que a sustente.
Abraços...

R Lima disse...

Vc é fantástico.. perfeito texto.. frase perfeita..

Vir aqui é garantia de coisa boa.

E quem disse que tb n tenho escudos:? Todos nós temos.

Abçs,



Texto de hoje: 33 aNos...

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Mimi disse...

Não uso armaduras, levo o coração assim, fora do peito, batendo livremente.

Conheces a referência?

;-)

beijo