15 fevereiro, 2008

Andarilho


Sigo andando por aí depois da folia. Sem destino certo, o jeito é bater a porta da casa, agora vazia depois do período de festas. A cabeça, levemente inclinada para cima, observa o céu, as janelas entreabertas e as luzes intermitentes das vitrines que iluminam cada avenida em que passo. Flano à procura de algo que talvez eu tema decifrar, mas que inspira a caminhada mesmo quando o túnel está escuro.

Este andarilho que aqui vos fala não quer cansar. Corre, mas não perde o fôlego. Nada, mas não morre na praia. Pedala no comando do seu próprio guidão, mas não percebe a condição estática de sua bicicleta, que não sai do lugar. Caminha, num ritmo de marcha atlética, lembrando as cenas de infância, quando o esforço físico em nada lhe apetecia.

A ambição é de cruzar fronteiras e conhecer outras terras. No entanto, no mapa do andarilho, não existem linhas geográficas que separam as nações. Ele pertence a todos os países, ele assume todas as bandeiras. Ele abraça seus vizinhos como quem está disposto a conhecer nova gente e fazer novos amigos.

Lentamente, o tempo se torna soberano da situação e faz com que o sol surja a pino no horizonte. Não houve hora de descanso, por opção do próprio andarilho, seguidor de seu destino num anda-que-anda apressado. A sede de tirar o véu do desconhecido é por demais grande. Quem o estimula a se movimentar é um impulso de natureza etérea, quase esotérica, cuja força se reverbera em cada gota suor caída da testa.

Mas eis que, finalmente, é chegada a parada final dessa viagem. No cenário, a aridez da solidão divide a cena com uma lápide, em memória ao grande poeta João Cabral de Melo Neto. Nela, fora inscrita apenas uma frase: “Nascer já é caminhar”. Tomada como mandamento, só então o andarilho deu o suspiro derradeiro de sua jornada e se pôs a sentar.

O sal do suor, misturado ao sal da única lágrima que verteu, benzeu aquele que, finalmente, depois de tanto ir e vir, pode apreciar o regozijo de um renascimento. “Nascer já é caminhar”, ele lembrou, esboçando um sorriso de canto de boca, antes de pôr a mochila nas costas para retornar à velha casa em que sempre morou.

8 comentários:

[P] disse...

Gosto de exercitar meu lado andarilha de vez em quando. Mesmo que não saiba exatamente onde quero ou vou chegar. Mesmo que o cansaço chegue e os sapatos apertem. Procuro uma sombra para descansar, tento avistar algum sentido e sigo, de novo, descalça, sem saber se conseguirei chegar. Este não saber é a melhor parte, pra mim ["A sede de tirar o véu do desconhecido é por demais grande", como você escreveu].

Bonito texto.

=*

Renato Ziggy disse...

Eu sou desses tb que gosta de andar e avistar horizontes novos. Traz um renovo pra alma, sabe? Mas o regresso tb é bom, dá uma sensação gostosa que mal dá pra descrever.

Texto lindo, meu caro! Valeu demais pela visita... vou lá ler o texto que me indicaste. Inté.

Renato Ziggy disse...

Cara, eu li lá o texto que vc indicou e achei muito bacana. Vc me fez lembrar de dias atrás, em que discordei do Critical Watcher, em que ele dizia q a música (obra de arte) só era concebida se houvesse um equilíbrio da sincronia alma-corpo-mente. E você vem e me fala de tempestades. nossa, eu sou adepto a elas... É delas (o desequilíbrio) que nascem de mim as palavras mais verdadeiras, basta que eu deixe fluir.


Meu, bom demais ter achado teu blog. Você é excelente!

Anônimo disse...

"Preciso ir, não posso demorar. Tenho ainda a minha velha casa pra arrumar. Armários, gavetas, folhas revirar. Econtrar uma canção..."

Carol Timm disse...

Daniel,

Gostei imensamente deste seu texto... "nascer já é caminhar... !"

Caminhemos então com sabedoria... apreciemos a paisagem, especialmente o que toca nossos corações.

E se preciso, renasçamos de novo e sempre a cada dia.

HOJE É UM NOVO DIA. Mario Quintana.

Beijos,
Carol

Dauri Batisti disse...

Amigo,
encontrei seu endereço no "avesso" e adorei este texto que acabei de ler. Muito, muito bonito. Vou olhar mais e voltarei. Se vc me permitir adicionarei seu blog nos meus links.

o Cronista disse...

andando dps da folia?
ainda alcoolizado ou atras de um carro alegorico?

Renato Ziggy disse...

Selo pra vc. Passa lá. Inté!