27 fevereiro, 2008

Álbum


— Toc, toc, toc.
— Quem bate à porta?


Eis o menino de mãos no bolso, com as meias erguidas quase até o joelho, que um dia aprendera a sorrir de canto a canto do rosto, exibindo ao mundo seus pequeninos dentes ainda de leite.

Com ele, pra lá e pra cá, o menino que bate à porta carrega junto o seu baú de brinquedos. Lá não tem segredos, pelo contrário. O regalo precioso da criança guarda consigo um passado não muito longe do tempo, mas que poderia ser bem mais próximo da memória. Trata-se de um tempo em que não se tinha medo de assumir os quereres, entre monstros, castelos, bonecos e seus cavalos.

Naquela época, o soldado ainda não era de chumbo e também não tinha a bailarina para lhe apresentar o amor, na mais pueril de suas multifacetadas formas. Sua feitura era simples, simples: pele, osso, carne, órgãos, mente, memória, coração, como bem regeu um dia a cartilha de seus criadores.

Hoje o menino soldadinho mora num porta-retrato esquecido na gaveta do avô. Ao rever a foto, o velho senhor de barbas brancas e parco cabelo rememora a essência de um tempo cultuado por suas reminiscências, como quem conta a saga de sua mitologia, com as devidas glórias, honras e conquistas.

Salve, portanto, os idosos, salve a infância. Salve as histórias, salve os mitos. Salve também (e sobretudo) a memória, mesmo que hoje ela esteja combalida por um medo latente de encontrar no seu baú de brinquedos as figurinhas de um álbum ainda com lacunas preciosas: as do próprio passado.


“O pior dos nossos retratos é que vão
ficando cada dia mais jovens”
[Mario Quintana]



12 comentários:

Renato Ziggy disse...

Daniel,

As fotografias de infância são as melhores! Eu sei que, se um dia tiver filhos, coisa que não vai faltar é foto, videos, gravação da vozinha deles quando bebês, aprendendo a falar, passo a passo registrado, para que um dia eles se vejam e tenham uma inspiração no mínimo similar a essa sua, que de tão forte, gerou belas palavras, cheias de ternura e algo singelo, que não sei traduzir em palavras.

...

Quando era criança não queria ter 23 anos, queria ter pra sempre 10. Agora quero permanecer pra sempre nos 23, porque as coisas pra mim, ainda que de perspectivas diferentes, têm tido um frescor muito gostoso! E isso é muito importante, porque tempera a vida da gente.

Mano, eu realmente já fico até meio que sem graça de te elogiar tanto, porque a cada visita que faço à sua velha casa me pego surpreendido pela forma tão bela como você lida com o singelo e o simples. E é isso que me causa admiração nos seus textos... Como eu queria ter essa leveza boa nas palavras. As minhas são constantemente rebuscadas.

Mas enfim, é isso. Mil vezes BRAVO! É o tipo de espetáculo que eu aplaudiria de pé. Abração!

Zy

Anônimo disse...

É você na foto? Eu adorei o texto e achei a frase do QUintana genial (só pra variar um pouquinho... rs)

Beijos.

Clara Mazini disse...

A infância é época intocável. A mim me agrada demais as crianças, sua sede de conhecimento e espantos constantes diante do mundo. É bonito ver a relação dos pequenos com a vida, porque para eles nada é banal.
Nostálgico, bonito e leve, isso.

Renato Ziggy disse...

"Eu tenho a sensação de que a alma não suporta tantas intempéries que, por muitas vezes, só nós a enxergamos. E eu, Zy, sinto falta de um empurrãozinho para ver os outros lados desse poliedro de tantas faces."

Daniel, discordo de você nesse trecho, embora respeite sua visão. O fato é que a vida tem me ensinado que a alma suporta as mais variadas intempéries sim. E Deus é tão justo que não permite jamais que a intensidade delas seja maior do que eu possa suportar. E elas me servem "no mínimo" para que eu descobra que, muito além do que faço idéia, há fortalezas dentro de mim, inclusive as que me ajudam a vencer aquelas farpas do passado que ficam se depando no peito da gente.

"Curioso você falar que meus textos são leves. Eu, por ora, não os acho. Acho pesados demais até -- pelo menos, é o que alguns amigos me falam."

Talvez eu tenha me expressado mal. Os conteúdos têm densidade sim. Mas as palavras me causam a sensação de leveza. Você as conduz de um jeito que é demasiadamente seu. Hehe!

Abração!

Guilherme Côrtes disse...

bicho, que coisa boa de ler. lembrei do seu comentário a respeito dos passados lá no blog.
e que bom que o personagem conseguiu se relembrar, o que a gente foi um dia pode fazer uma falta....

enfim, salve! sempre.
um abraço.

Tudo ou nada ... disse...

Sou extremamente ligado ao meu passado de criança, principalmente com minhas fotos. Nada melhor para nos levar ao passado do que as fotos, nossa memória de prontidão.
Abraços

Bárbara Matias disse...

Esse texto me fez pensar muito nos nossos dias... nossos tempos.... naqueles que não mais voltam e nesses que um dia não mais voltarão!

E sempre nos veremos de novo em fotos, em filmes, em tv's,... e nos veremos diferente, como que não nós, fora de nós, um "nós" que já se foi.. não porque não mais existe, mas porque co-existe com um outro nós... um diferente! Mas sabe? esse outro ainda continua a ser nós mesmos... e podemos reconhecer isso através dos nosos velhos hábitos!
Porque nos fundo sabemos que não nos mudamos da nossa velha casa!!!

Tbm quero saber se é vc o da foto...rs


bjinhos...ah.. dps passa seu msn...

Marco Antonio Araujo disse...

Li isso em um péssimo momento... estava lembrando meu avô... que partiu em julho do ano passado.
Emocionante, cara.

Deixei um Meme pra você... abraço

[P] disse...

Na parede da minha memória abarrotada de recordações, com certeza as da minha infância são as melhores... bons tempos aqueles. Só não posso me demorar muito vendo as fotos guardadas em minhas gavetas, porque sou uma manteiga bem derretida :)

Bonito seu texto. De uma doçura...

=**

:: Daniel :: disse...

Amigos e amigas da casa,

O da foto aí é o escriba aqui que vos fala... =]

Com meia quase no joelho, sapatinmho branco, mão no bolso e orelinhas de abano. Rs

Beijos e abraços em todos!
Daniel

Anonimo disse...

A infância, másgicos temos que não voltam mais, tempos de uma inocência e pureza que vamos perdendo à medida que vamos amadurecendo e conhecendo mais da crueza da vida. Ótimo texto, muito terno, nos traz reminiscências de momentos que gostaríamos de sentir novamente.

Abraços.

Luis Fernando disse...

o meu caro! muito bom isso! adoro ver fotos, elas parecem mais vivas que n´so muitas vezes e são imotais, ali, sempre jovens, sorrindo, despreocupadas, junto dos amigos. mas é bom olhar as fotos, sabe, não fique triste pq passou, fico feliz pq aconteceu! seu texto tbm me lembrou ( se bem q a temática é umpouco diferente) o livro "O retrato de Dorian Gray". bem, é isso, abraço!