14 março, 2008

Dois andares


O alvorecer doura as janelas em que, um dia, nos entreolhamos. Eu no primeiro andar do prédio, você mais acima. O andar mais alto sempre foi o seu local mais devido mesmo, pelo menos no altar em que nosso amor um dia fora consagrado no meu peito.

Ali era o relicário de uma vida nova, guardada na caixinha de vidro que abrigava nossos santos corações. Ali estava também a luz da crença de que, enfim, céu e terra estavam no mesmo nível, no mesmo plano.

Os deuses naquele tempo eram conosco. Avisavam, por meio do vento, da lama, do sol e da água os ciclos de um amor que vigorava, que experimentava nascer e renascer diariamente, como um personagem que ainda vive os mitos da criação de seu próprio mundo.

[...]

Na janela, eu olho e você ainda não acenou. Deve estar dormindo, acredito. Enquanto você não chega, sigo alternando minha atenção para cima e para o mundo, que passa largo aos olhos, numa velocidade que impressiona. O trânsito dos sentimentos é impressionante. Só o meu que anda por ora estacionado.

Mas seu café está posto à mesa. Pode entrar sem bater. A velha casa continua sendo sua. Fique à vontade.


5 comentários:

Renato Ziggy disse...

"Mas seu café está posto à mesa. Pode entrar sem bater. A velha casa continua sendo sua. Fique à vontade."

Engraçado que, se você não especificasse com quem a personagem estava falando, esse trecho seria um forte elemento de identificação do leitor.

Eu, por exemplo, sinto-me super à vontade no seu blog, qualquer parte do dia ou da noite posso vir aqui, ler-te, falar coisa ou outra, tomar meu café.

Mas a metáfora se enquadra a outras circunstâncias, as quais foram muito bem expostas pelas suas figuras de linguagem, que denotam tamanha sensiblidade para contemplar de uma janela o que acontece dentro de você mesmo e daquilo que o estimula a escrever.

Tudo bem que confesso que sou muito curioso em vê-lo falando também do que remetesse ao futuro, ao novo, ao agora, sem pretérito perfeito. Mas são apenas vontades minha enquanto leitor. Rsrsrs!

Ah, eu sempre adoro o que você escreve. Mas é como eu já te disse, você é FODA. Hehehe!
Até mais, amigão!
Ziggy

[P] disse...

Faz tempo que deixei de bater à porta com cautela, sem saber como o dono da "Velha Casa" receberia uma estranha para o café. Agora vou adentrando sem pedir licença, sento-me à mesa, ouço da música da casa e troco palavras com o moço que sabe brincar com palavras e servi-las num banquete que satisfaz aos olhos e alimenta a alma.

[Viu? Esse abuso todo é porque ganhei aquele post dos colchetes, tá?]

Beijo.

ps: conterrâneos E vizinhos :)

Anônimo disse...

Deixa eu te dizer que o texto todo tá excelente mas a frase que mais me marcou foi "O trânsito dos sentimentos é impressionante. Só o meu que anda por ora estacionado."
Demaisssss!!!
Já me acostumei a visitar sempre esta casa, viu?
beijo e bom fim de semana

FlaM disse...

Engraçado, eu vim aqui pq li seu comentário no Pedro Gabriel sobre coincidência de post. E acabei encontrando outro tipo de coincidência.
Eu já passei por exatamente isso que vc descreve aqui, e não era metáfora. Eram dois apartamentos, com um quarteirão no meio, há uns 25 anos atrás (será que vc já era nascido?). não havia internet nem blogs. Eu tinha então um diário que eu guardo até hoje, onde deve ter uma página parecida com essa sua - em que olho para aquele janela e acompanho seu acander e apagar.
Com o tempo, eu fui para o apartamento de lá, Mudamos de cidade, tivemos filhos. Nos separamos. Foram 23 anos de café na mesma mesa. O tempo não pára. O que era bom ficou ruim. o café esfriou.
Mas eu gostei de vc ter me lembrado daquela janela e daquele olhar aflito. Lindo texto!
bj
(o engraçado é que eu ando pensando e escrevendo sobre alguns tipos de coincidências...)

FlaM disse...
Este comentário foi removido pelo autor.