13 março, 2008

Poeira


Aquele cantinho nosso, perto do corredor, está empoeirado hoje. Sinal do tanto tempo que não passamos mais por ali, trazendo conosco um pouco do vento que antes nos impulsionava em cada degrau subido pela escadaria de madeira da velha casa.

Lá em cima, já no quarto, o destino é o “cada um na sua”, em seu respectivo ponto de descanso compartilhado por ambos. Ainda que juntos no mesmo espaço, cada qual procura seu reconforto em paralelo, em seus próprios cantos da cama.

Com o olho-a-olho religioso do “Boa noite” que trocamos quase diariamente, outras palavras já não são mais necessárias. Nossos gestos são sublimados pelo cansaço e coroados logo em seguida com o crepúsculo da sua luminária.

No canto de cá, o sono não desceu junto à lua sua de cada dia. E a luz lá de fora, que entra pela porta entreaberta, enfoca o espetáculo daquela poeirinha antiga, recolhida no cantinho do nosso corredor. Por um instante, meu escuro se alumia. É um palco que se acende e transforma aquele pozinho no isolado monólogo do meu amor por você.

O protagonista aqui pede apenas uma concessão: que seu diretor faça disso tudo um espetáculo mudo. É que eu não quero ouvir, por ora, o som dos seus aplausos ao fecharem as cortinas.


Mais vale o meu pranto que esse canto em solidão
Nessa espera o mundo gira em linhas tortas
Abre essa janela, a primavera quer entrar
Pra fazer da nossa voz uma só nota
[Los Hermanos]


7 comentários:

Anônimo disse...

Uma mistura de sentimentos e lembranças acontece aqui no meu peito, ao ler seu texto.
Bonito, sem dúvidas.
Mas, mais que bonito, profundamente real.
Deixamos tantas memórias, tantas situações, tantas pessoas empoeirarem, no nosso esquecimento.
Não sei bem o motivo, mas me lembrei agora de "Brilho eterno de uma mente sem lembranças". Já assistiu?
E me lembrei também de um filme a que assisti anteontem: "Premonições", com a Sandra Bullock.
Como é possível deixarmos nossas vidas chegarem ao não-lembra-se-de-mais-nada-que-é-bom?
Por fim, "lembrei-me" de mim mesma. Das alegrias que eu escondi no mais fundo dos baús, porque não achava que eu a merecia. No amor que eu desperdicei por puro medo. Acredita nisso? Medo. O pior é que ele é tão poderoso, e sabe disso.
No canto de cá, não há mais sono. Insone estou. Sou. E um pouco cega também...

Beijos.

Renato Ziggy disse...

Eu não sei o que anda acontecendo com a humanidade, sabe. Ando lendo textos que tratam de relacionamentos que, com o passar do tempo, se desgastaram, perderam o frescor, o quê de novo, de bom e de brilho. Fico me perguntando qual seria a causa disso tudo, de tanta poeira, de tanta penumbra. Eu quero é noite, eu quero muita luz também! Desculpa minha reflexão, não quero entrar em questão o SEU relacionamento (se o personagem do texto for mesmo você), mas falo de um sentido amplo...

Por quê com meus avós, que com seus 61 ou 62 anos de casados é diferente? Ai, que bom que neles, na mais bela e sábia velhice, não vejo poeira, não vejo monotonia, nem sublimação de momentos que, ainda que silenciosos, sejam lindos e marcantes, a ponto de se tornar uma referência pra mim?

Lindo seu texto, Daniel, mas ainda assim reforça um incômodo que tenho, porque inclusive sou filho de pais divorciados. Não deixa seu amor se empoeirar. Abração, meu amigo!

Vida em Palavras disse...

Nossa achei seu texto lindissimo, me fez viajar em alguns pensamentos que na verdade n�o sei se foram os mesmo que os do autor ... Parab�ns

Bárbara Matias disse...

Ei Dani...

Lindo esse seu texto..
Esse cantinho que agora já não é mais tão vigoroso como já foi um dia... tocou bem fundo! Triste ser passado, bonito ser boa lembrança e ser um refúgio do "boa-noite-do-dia-a-dia", um refúgio do olhar cansado da rotina, da indiferença que o tempo trouxe...

LINDO...

Ah.. e não se intimide em viajar nos meus textos... eles já não são mais meus quando os ponho no papel... a interpretação é o próprio poema! =D

Bjim,

Babi

J.Machado disse...

É sempre assim caro amigo,
Faço das palavras de um dos comentários acima, as minhas. O que anda acontecendo com a gente?
Falamos de amores doloridos, efêmeros, doídos. Falamos de desejos intensos e puros e ao mesmo tempo frustrados.
Quero amar tão intensamente q me dói e q assusta. Enche o raio do saco isso tudo.
As palavras são sempre lindas, os textos impecáveis, mas o conteúdo sempre cinzento.
Qdo conseguiremos mudar isso? Morreremos tentando?
Até qdo Los Hermanos (q a propósito e coincidentemente ouço agora) serão nosso norte com seus versos agridoces?
O que há de errado? Eu ou o resto?
Parece q sempre dou soco em ponta de faca.
...
Gde abraço!

FlaM disse...

Puxa, que texto lindo esse também.
Um pouco de poeira num cantinho, pode ser até um tempero, ou um alerta. Não dá é para deixar a velha casa virar um mausoléu...

FlaM disse...

vai um aspirador aí?