08 abril, 2008

Pelo olho mágico



O corredor está vazio. A luz continua acesa nesta manhã. É automática, acende sozinha. Essa minha vida essencialmente descritiva procura nos detalhes mínimos do cotidiano cada quadro dos 24 necessários para manter em movimento linear esse filme que é nossa vida. E o olho mágico ali na porta confesso que nunca fez muito sentido, porque ele só emoldura, dia sim dia talvez, a visão da minha vizinha da frente. É uma senhora que quer porque quer insistir numa amizade entre sua cadela e a minha vira-lata de dentes sujos. Mais ninguém. Raramente batem na minha porta.

Pois, senhores, eis que um belo dia, quando menos se esperava, a campainha tocou. O prédio não tem porteiro, tudo aqui é meio ao Deus-dará: entra quem quer e sai quando pode. É perigoso, mas não me dá medo. Tenho a salvaguarda do terceiro olho, esse mágico instalado na porta, que já não consegue mais esconder sua condição vetusta na sua retina de vidraça, com a lente já sem foco e as ferrugens à mostra.

Como ia dizendo, a campainha tocou, embora no olho mágico a visão continuasse a mesma. Era o corredor vazio com a luz acesa na manhã. Quem é, perguntei. Sem resposta. No chão, um velho clichê: um envelope sem destinatário, CEP ou remetente. Dentro, estava um papelzinho escrito à mão, de caneta preta e letra pequena, levemente desviada para a esquerda.




Oi

Deixe-me entrar, sou eu.
Desta vez, vim sozinha.

O amor pede paciência.
Avisa que não está com pressa.

É para você esperá-lo em
silêncio.

Vida.



Não entendi. Quem é essa pessoa de quem eu nunca ouvi falar? Desconheço por completo. Abri a porta com certo medo para ver se, pelo menos, pegava alguém no elevador, mas nenhum vestígio do carteiro do porteiro ou de mais quem quer que fosse.

Tranquei tudo e fui me deitar intrigado. Só então, com a mente repousada no travesseiro, meio embalado pelo sono, é que me dei conta do recado. Levantei correndo e voltei à porta, desta vez atônito e esbaforido. Nossa, eu disse, como só agora eu pude dar conta de que havia instalado erradamente o olho mágico? Tudo errado, tudo ao contrário.

A vida que assinou aquele recado tentava abrir sua porta para mim. A visão que eu tinha por meio do olho era reflexiva. Era o interior da minha casa, com o corredor vazio e a luz acesa de manhã. Momento de silêncio, momento de resignação. Olho-recado-olho-recado e um breve esboço de sorriso. Tudo numa só seqüência de curta-metragem. Todos os 24 fotogramas congelados em seus próprios segundos de cena na tela.

Pelo menos naquela hora, o recado deixado na porta me fazia companhia na velha casa, nem que fosse para lê-lo repetidas vezes. Até que toquem a campainha ou que resolvam bater à porta novamente. Assim, pude deixar o olho mágico, já combalido pelo tempo, com seus sinais de cansaço, desfrutar de certo repouso em sua morada perene.


[Texto antigo e revisado]


12 comentários:

Mimi disse...

"o amor não tem pressa, ele pode esperar... em silêncio"

Visão realista e sonhadora, visão revisada e muito bonita.

parabéns, Daniel, teus textos sempre me surpreendem!

(ai, falando em Chico...)

;-)

beijo carinhoso

Anônimo disse...

que lindo...
da proxima vez você deixa um poema também....

Bárbara Matias disse...

Dani,

A monotonia do prédio era interior aquele exato apartamento.
Que olho mágico sábio.... que realidade concreta. Concreta por esse olho mágico, que diz tanto de mim, que aponta só pra mim, e eu? E eu aqui teimando:"não tenho vizinhos!"

Bjim, desculpe minha "sumida"...tá?!

Tudo ou nada ... disse...

Sem sombra de dúvidas este texto me tocou profundamente.
Abraços

Anônimo disse...

A-d-o-r-e-i este texto! E olha que coincidência...encontrei aqui a palavra que escrevi hoje (em destaque)lá no blog (palavra que escolhi para guiar meu dia)

"O amor pede PACIÊNCIA."

beijos
***sim, ultimamente ando escrevendo "poucas" palavras por lá :)

Anônimo disse...

É tudo uma questão de referencial...

Beijos.

FlaM disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Dan!
desde o incio sou fã da velha casa, adoro seus textos ,me fazendo muitas vezes, reflexoes sobre a minha vida também.

=]
abraço!

do guri!

Ana Cláudia Zumpano disse...

Lindo texto! Adorei o momento da descoberta... na verdade foi um filme passando aqui na minha cabeça... deixe o amor entrar sempre!
eu amo LOS HERMANOS, tava vendo aqui do lado... e li seu texto ouvindo a CASA PRÉ-FABRICADA...
bjos ;*

Juliana Almirante disse...

Acho que se a vida me mandasse um bilhete, seria em forma de cheiro.
Do cheiro da minha nova casa.

Camilinha disse...

Fantástico!!!

... a vida tá aí, de portas abertas. Quem vai entrar? E quem vai ficar de fora?

beijos daqui...

A Maya disse...

O amor espera em silêncio, mas a vida, esta sempre vai bater em nossa porta!

Belo texto!

bjs