O corredor está vazio. A luz continua acesa nesta manhã. É automática, acende sozinha. Essa minha vida essencialmente descritiva procura nos detalhes mínimos do cotidiano cada quadro dos 24 necessários para manter em movimento linear esse filme que é nossa vida. E o olho mágico ali na porta confesso que nunca fez muito sentido, porque ele só emoldura, dia sim dia talvez, a visão da minha vizinha da frente. É uma senhora que quer porque quer insistir numa amizade entre sua cadela e a minha vira-lata de dentes sujos. Mais ninguém. Raramente batem na minha porta.
Pois, senhores, eis que um belo dia, quando menos se esperava, a campainha tocou. O prédio não tem porteiro, tudo aqui é meio ao Deus-dará: entra quem quer e sai quando pode. É perigoso, mas não me dá medo. Tenho a salvaguarda do terceiro olho, esse mágico instalado na porta, que já não consegue mais esconder sua condição vetusta na sua retina de vidraça, com a lente já sem foco e as ferrugens à mostra.
Como ia dizendo, a campainha tocou, embora no olho mágico a visão continuasse a mesma. Era o corredor vazio com a luz acesa na manhã. Quem é, perguntei. Sem resposta. No chão, um velho clichê: um envelope sem destinatário, CEP ou remetente. Dentro, estava um papelzinho escrito à mão, de caneta preta e letra pequena, levemente desviada para a esquerda.
Oi
Deixe-me entrar, sou eu.
Desta vez, vim sozinha.
O amor pede paciência.
Avisa que não está com pressa.
É para você esperá-lo em
silêncio.
Vida.
Não entendi. Quem é essa pessoa de quem eu nunca ouvi falar? Desconheço por completo. Abri a porta com certo medo para ver se, pelo menos, pegava alguém no elevador, mas nenhum vestígio do carteiro do porteiro ou de mais quem quer que fosse.
Tranquei tudo e fui me deitar intrigado. Só então, com a mente repousada no travesseiro, meio embalado pelo sono, é que me dei conta do recado. Levantei correndo e voltei à porta, desta vez atônito e esbaforido. Nossa, eu disse, como só agora eu pude dar conta de que havia instalado erradamente o olho mágico? Tudo errado, tudo ao contrário.
A vida que assinou aquele recado tentava abrir sua porta para mim. A visão que eu tinha por meio do olho era reflexiva. Era o interior da minha casa, com o corredor vazio e a luz acesa de manhã. Momento de silêncio, momento de resignação. Olho-recado-olho-recado e um breve esboço de sorriso. Tudo numa só seqüência de curta-metragem. Todos os 24 fotogramas congelados em seus próprios segundos de cena na tela.
Pelo menos naquela hora, o recado deixado na porta me fazia companhia na velha casa, nem que fosse para lê-lo repetidas vezes. Até que toquem a campainha ou que resolvam bater à porta novamente. Assim, pude deixar o olho mágico, já combalido pelo tempo, com seus sinais de cansaço, desfrutar de certo repouso em sua morada perene.
[Texto antigo e revisado]
12 comentários:
"o amor não tem pressa, ele pode esperar... em silêncio"
Visão realista e sonhadora, visão revisada e muito bonita.
parabéns, Daniel, teus textos sempre me surpreendem!
(ai, falando em Chico...)
;-)
beijo carinhoso
que lindo...
da proxima vez você deixa um poema também....
Dani,
A monotonia do prédio era interior aquele exato apartamento.
Que olho mágico sábio.... que realidade concreta. Concreta por esse olho mágico, que diz tanto de mim, que aponta só pra mim, e eu? E eu aqui teimando:"não tenho vizinhos!"
Bjim, desculpe minha "sumida"...tá?!
Sem sombra de dúvidas este texto me tocou profundamente.
Abraços
A-d-o-r-e-i este texto! E olha que coincidência...encontrei aqui a palavra que escrevi hoje (em destaque)lá no blog (palavra que escolhi para guiar meu dia)
"O amor pede PACIÊNCIA."
beijos
***sim, ultimamente ando escrevendo "poucas" palavras por lá :)
É tudo uma questão de referencial...
Beijos.
Dan!
desde o incio sou fã da velha casa, adoro seus textos ,me fazendo muitas vezes, reflexoes sobre a minha vida também.
=]
abraço!
do guri!
Lindo texto! Adorei o momento da descoberta... na verdade foi um filme passando aqui na minha cabeça... deixe o amor entrar sempre!
eu amo LOS HERMANOS, tava vendo aqui do lado... e li seu texto ouvindo a CASA PRÉ-FABRICADA...
bjos ;*
Acho que se a vida me mandasse um bilhete, seria em forma de cheiro.
Do cheiro da minha nova casa.
Fantástico!!!
... a vida tá aí, de portas abertas. Quem vai entrar? E quem vai ficar de fora?
beijos daqui...
O amor espera em silêncio, mas a vida, esta sempre vai bater em nossa porta!
Belo texto!
bjs
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