02 setembro, 2008

Abutre



Conta uma lenda iorubá que o abutre ficou careca de tanto praticar a bondade em sua vida de bater asas em nuvens alheias. Diante da escassez de penugem, o bichano ficou mal que só, capaz de deixar o espírito altruísta de lado para amedrontar, com o bico arqueado, aqueles que se espantavam com sua inesperada amargura.

Curiosamente, há tempos eu tenho me notado mais calvo que de costume. Engraçado, porque os fios não se esvaem mais nas águas. Desta vez, é o céu que ameaça desabar a cabeça. Vejam bem, senhores: desabar “a”, e não “sobre”, como costuma acontecer nos mais verdadeiros clichês. Algo o corpo humano tem que botar para fora diante do silêncio que ainda me acomete nos momentos de maior perplexidade.

Eu mesmo já não sinto mais febre, já não sei mais gritar, tampouco forçar as lágrimas. São apenas os fios que caem dia a dia sem deixar qualquer rastro no chão. Esta é uma resposta sintomática à ausência de alguns retornos do mundo. A única imagem a mim refletida no espelho é a de um abutre cansado e envelhecido, branco pela palidez provocada por uma calma incoerente, um alarido abafado, por uma ironia desapegada a essa vida louca.

Mas, acreditem, ainda não bati em revoada definitiva. No fundo, eu aguardo com certa esperança esse céu cinzento passar de todo, não importa quantos fios de cabelo restarem na cabeça. Essa cuca ainda vai batucar muito, tenho certeza. Seja para ficar maluca de vez ou para ver se faz de mim, como canta Bethania, uma pessoa assim vitoriosa.




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