29 junho, 2009

Aos leitores

Caros amigos que frequentam ou vistam a velha casa,


Desculpem o tom exagerado dos últimos posts, mas eu preciso exasperar. Pelo menos, aqui. As palavras funcionam como minhas lágrimas -- preciso chorar, tento, mas não consigo. Há anos. Uma confissão que hoje faço a vocês. E elas (as palavras) me têm saído copiosas. É falta de choro descontrolado, aquele que pede o lenço na mão. Não quero mais verter nada forçado. Se dos olhos nada ainda salta, vou seguindo com a escrita. Pelo menos as palavras cumprem bem o papel de lavar a alma. Tudo sai espontâneo daqui, sem editor de texto, sem corretor ortográfico, sem nada. A palavra-lágrima brota. Afinal, choro bom é aquele de natureza não-planejada -- portanto, não carece de revisão.

[...]

Sei que corro o risco de soar incompreendido para alguns, exagerado para outros ou melancólico para os demais. Mas, longe de querer ser presunçoso, tampouco mal-educado, lembro aqui duas músicas: uma é Paulinho da Viola: "Eu sou assim, quem quiser gostar de mim, eu sou assim". Ponto parágrafo.

Outra é a sempre presente Bethânia, senhora "das chuvas dentro de mim". Ainda moro depois das tempestades, minha cara, mas eu reconheço: ainda sonho com a cena romântica do beijo no temporal.

Estacionamento


A cena ainda é do estacionamento. Nós dois dentro do carro benzendo com a tristeza nosso fim. Pegue o lenço, enxugue o rosto com a página virada. Não, por favor, não feche de vez o livro, ainda temos história pra contar. Fique mais um pouco aqui.


[...]

Sim, aquele dia ainda reverbera, embora tenha me esforçado em valorizar mais os dias felizes juntos do que apenas aquele em que você bateu a porta com a eventual força, pôs a mão na testa e saiu andando. Alô, você chegou bem em casa? Sabe que eu sempre me preocupo.

[...]


Ainda vejo você diminuindo no meu campo de visão, embora a amplitude do vazio fosse latente naquele momento. Não tínhamos escapatória (Quem ama sempre encontra saídas? Eu não as vi naquele instante, nem você talvez). Também não temos hoje escapatória -- a aliança já fora feita. Eu calculo há cerca de dois, três, cinco anos. Outros preferem jogar no ar e apontar os tempos imemoriais, aqueles cujo apelido hoje dão de "destino".

E aliança é coisa difícil de desfazer -- "Não se desama dando um mero tchau", lembra? Tantas palavras só para dizer que ainda sinto falta do seu cuidado. Por isso tenho protelado tanto o sono. Dormir me dói. O esforço de duelar com o lado esquerdo vazio da cama, agora frio por causa do inverno, é grande. Talvez daí se explique o cansaço no corpo toda vez que acordo. Não descanso enquanto não tenho você novamente. Por isso, por ora, sigo com o coração estacionado. Igual àquele nosso último dia. Acho que ainda estou à sua espera.

27 junho, 2009

A plantinha

Era como uma plantinha de apartamento: sempre no mesmo canto, sempre com o mesmo sol, sem muitas evoluções na vida. Era raro quando um pé de vento vinha lhe contar alguma nova -- a janela vivia fechada para evitar a poeira. Sua única companheira diária era a água, mas ainda sim só lhe molhavam rapidamente a raiz. Mais nada. Queria tanto sentir um pouco de frescor pelo corpo, pobrezinha, mas só recebia a calmaria das águas em seus pés. E com tempo contado: coisa de três vezes por dia e olhe lá. Restava a pobre plantinha se reservar às mutações a ela impostas para ver se conseguia ter alguma movimentação nessa vida. Era sua sina: responder no corpo aquilo que a casa lhe transmitia. Papo de energia, como dizem os mais entendidos no assunto hoje. A plantinha alterava seu estado físico de acordo com o ambiente. Era uma espécie de termômetro natural: absorvia o clima de seu habitat. Ecologicamente correto para lhe impor em sua estrutura o incorreto. Daí se explica sua natureza de caule encurvado, com pouco verde predominando, sem nenhuma florzinha qualquer para contar história. Ela funcionava como o espelho da velha casa, embora não pudesse cumprir de fato sua verdadeira função no mundo: refratar a quem para ela olhasse a real identidade da aridez, aquela terra que carece de um pouco de chuva para seguir a vida. O chão continuava liso, sem rugas, nem demarcações. Tudo parecia intacto. Inclusive a plantinha em seu vaso.

23 junho, 2009

Insone

Aos que dizem que sou muito fechado, de poucas palavras e de muitas entrelinhas, tenho uma confissão aqui a fazer: senhores, venho me alternando nessas últimas semanas entre a alegria e a tristeza. Tudo no intervalo do dia, o que torna ainda mais cansativo o prosseguir adiante. É tudo como uma parábola, dessas que aprendemos no colégio. Geralmente a euforia cresce ao longo do dia. Assume um auge sublimado, pontilhado no gráfico (porque não o percebo) e cai vertiginosamente no fim do dia. Ao ponto de estar aqui agora, a poucos minutos para uma da madrugada, insone, dançando no escuro do quarto com a companhia de músicas aleatórias, sem coerência lógico-afetiva entre elas. Um amigo, poucas horas atrás, me perguntou ao telefone: "Você está bem?". Respondi que sim, mas é mentira. Minto para mim mesmo -- e, por tabela, para os outros. Tem me sido uma constante ultimamente. Tanto que finjo que durmo. O corpo pede a cama, o cansaço dá sinais latentes, mas não consigo dormir de fato. Medo do que virá pela frente, talvez? Não sei, mas alguma batida aqui dentro veio me responder que sim, há uma certa tensão. Será que é com o amanhã? Ou com o ontem que ainda guardo no bolso da camisa, papel dobrado que tenho comigo por pura mania de não jogar nada fora, memórias amontoadas na desordem do armário embutido? Não sei responder. Tenho me achado um tanto burro ultimamente. Embruteci. Forjei o cerrado da testa. Talvez por isso o sono não se deixa aparecer. Dormir me deixa mais sensível ao mundo. Mas esses dias têm sido assim: de pernas exauridas e de hora atrasada para chegar ao trabalho. Não há tempo para lembrar dos sonhos. Por isso talvez ainda esteja acordado: em vez de dormir e deixá-los vir à tona, fico à espera aqui no quarto, só para ver se algum deles vai bater à porta. Acordado, ainda mantenho uma nesga de sensibilidade de que preciso para ver um pouco mais de graça, cor e leveza nas pessoas. Por ora, ainda sigo seco e meloso.

10 junho, 2009

Apelido

Gostava tanto de te chamar por aquele apelido. Não era original, muitos faziam uso dele, mas me era muito aconchegante. Isso não quer dizer que era fácil: para mim, era como se estivesse duelando com o sacrilégio de diminuir você, sempre tão imponente, em duas sílabas modestas: vogal-consoante, vogal-consoante. Elas eram soletradas numa voz baixinha, precedidas de um leve assobio que anunciava minha presença. Antes de chamar, queria sentir nos olhos a câmera lenta do seu pescoço virado no meio da rua, aquele olhar contemplativo avistando o ponto de longe e, por fim, o movimento suave do sorriso ao me ouvir chamar do lado de lá. Era essa a forma de demonstrar um amor tão guardado aqui dentro, quase eremita, que se manifestava ao mundo ao seu jeito, sem muitos padrões ou convenções. Tentava a todo custo ser único, original, autêntico, mesmo sem saber muito sê-lo. Por isso, o assobio para chamar a atenção. E o apelido guardado que, mesmo hoje longe, ecoa em certas noites de silêncio aqui no quarto.

03 junho, 2009

Pesos e medidas


Ora, seu moço, o senhor ainda não percebeu que as coisas da vida têm o peso que a gente dá? Pare de se queixar por aí, dando grandeza aquilo que nem se estica. Outro dia quebraram o retrovisor do meu automóvel. Na hora a gente se enraiva, cerra o punho e dá uns gritos por aí. Desconta até em quem nada tem com a história. Não vê que era apenas um retrovisor? Plástico com um pedaço de espelho, moço. Só isso. Olha a dimensão por mim que tudo tomou? Coitado do céu, de tantos impropérios que escutou naquele dia. Sei que é difícil, mas tente pensar bem antes de ligar o rojão e estourar por aí afora, sem muita eira nem beira. Veja: até o fardo de cada dia, que muitos por aí chamam de cruz, pesa menos que o senhor imagina. E olha que até o sagrado já determinou: todos podem carregar o peso que lhe cai sobre as costas. Não vê esse potro em que o senhor está montado? Pois então: segue estrupiado que só, coitado, mas aguenta firme o senhor aí em cima com certo ar de placidez. Nada parece muito lhe importar. É a conformidade de sua vida, de seu papel nessa vida. Sabe de certa forma pesar e dosar sua sina diária de existir no mundo.

02 junho, 2009

Patologia


Tinha ela uma dor no peito perene. Era acometida toda noite, na hora em que mais pensava em repousar. As ordens do corpo, sobretudo de suas pernas, eram dissonantes às do coração, carente que só ele. Queixava-se a moça o tempo todo de uma ausência por ela própria sentida. Ou seria uma presença imaginada? Que nunca existira? A dúvida rolava cama adentro. De concreto mesmo, só a imagem da falta. Porque a dita cuja ela nunca vira de fato, de corpo presente em seu quarto, tangível aos olhos, às mãos, à sua boca com sede de amor. Como então ela consegue soluçar por aquilo que nunca teve? São coisas do coração, disse certo dia uma amiga. Mentira. Coisas da cabecinha da pobre garota, ainda afoita por não diagnosticar sua doença diária: o amor. Sim, aquele de espécie patológica, viral, que não enxerga, não pondera, não sente. Simplesmente se autocondecora digno e nobre só pelo fato de no mundo existir. Mais uma mentira. Nobre é reconhecer seu papel -- e ele, esse amor, é tão soberbo ao ponto de não se deixar diminuir diante do seu real tamanho. Invade a fronteira do real vestindo a forma pontilhada do imaginário. E ainda com rosas em punho. Dá para acreditar nele? Ela ainda cria. Efeito da tal doença tão mesquinha que deu no coração da moça, mas deixou seus batimentos iguais aos do cursar do dia. No máximo, sentia uma pontada, que acusava a tal falta daquilo que nunca tivera na vida. A dor mesmo se reveza entre a esquerda e a direita da cama. Era a procura, no fundo, de algo que ela ainda não teve, mas que a noite permitia sonhar um dia lhe pertencer.

01 junho, 2009

Mensagem de noite

Não fecharam a janela de todo. Ainda há uma nesga de claridade que incomoda. A cortina do quarto já não é mais suficiente para cobrir toda a fresta. Ferida esta aberta que sangra luz pelo quarto. Ainda está escuro no céu. O pouco que a lua se faz exibir ao mundo as nuvens tratam de esconder. De quando em vez entram uns feixes quaisquer aqui perto da cama. Desenham no chão letras da palavra "companhia". Tudo está refletido no teto. Este talvez seja o recado que me passam esses dias de muito sono, mas de pouco dormir.