16 novembro, 2009

Para Clarice


“Estou caindo numa tristeza sem dor. Não é mal. Faz parte. Amanhã provavelmente terei alguma alegria, também sem grandes êxtases, só alegria, e isso não é mau. É, mas não estou gostando muito desse pacto com a mediocridade de viver”.
[Clarice Lispector]


Eu também não, Clarice. Os dias por aqui se passam exatamente assim: oscilantes, alternando tristeza e alegria num ritmo ainda incerto. Hoje, por exemplo, estou feliz sem qualquer motivo, mas ontem me vi por algumas horas num profundo pranto interno. Coisa passageira, de menino manhoso talvez, que ainda não descobriu como faz para fugir dessa mediocridade. Minha relação com a vida, cara companheira, tem sido tão torpe ultimamente que ando preferindo o sono. Talvez esteja melhor ao acordar. Boa notícia: há cinco dias não faço uso de remédio para interromper a insônia. E tenho sonhado bastante, diga-se de passagem. Ou melhor: a memória tem colaborado nessa minha relação com os sonhos. Hoje eu lembro bem: me vi pequenino, na casa da minha avó. Era de tarde, céu ainda róseo, e eu tomava banho de mangueira. “Perto de muita água tudo fica mais feliz”, diz mais ou menos a frase de seu amigo Rosa. Talvez seja por isso que eu acordei bem. Estou em São Paulo esta semana, mas em breve vou procurar ver o mar no Rio.

Ao irmão que eu não tive

Queria muito poder contemplar sua existência hoje. Fecho os olhos e não consigo lembrar nossa despedida. Era garoto ainda, você ainda mais novo. Seria bom tê-lo conosco hoje. De verdade. Aqui em casa, as coisas vão caminhando. Papai vem tentando se reinventar, sem muito sucesso, e a mãe está ligeiramente cansada. Já tentei carregar os dois no meu colo, mas não dá. São arredios demais – talvez tenha puxado isso deles. Será que você seria arredio também? Só sei da cor dos seus olhos, azuis, como os meus e os da mamãe. Sei do seu nome, Pedro, e do sobrenome. Seu quarto continua conosco, hoje ocupado pelas roupas e algumas traquitanas de nossa mãe. Eles não falam de você, mas não se sinta desmerecido por isso. O amor ainda existe – entre eles e para comigo. Hoje eu o represento aqui. Mas isso não significa que não lamento por sua ausência entre nós. Queria tê-lo por perto para compartilhar a família. É muito sentimento e responsabilidade para lidar sozinho. Sua companhia me faria muito bem, mesmo pensando nas possíveis brigas (acredite: muitos me têm como uma pessoa de difícil gênio, mas as pessoas aumentam muito o que falam. Eu prefiro acreditar que a gente se daria muito bem). Qual faculdade você escolheria? Que segredos teríamos um com o outro? Onde eu o buscaria à noite (sim, o carro é meu e eu não empresto, ponto final)? Em que eu mais poderia ajudá-lo? Hoje sou jornalista, posso dizer que sei um pouco de alguns assuntos. Sim, e tenho uma cama de casal para deitar ao seu lado e ver um filme. E um videogame com dois controles para brincarmos. Não ria: eu guardei esperando que você um dia voltasse. Ainda aguardo. Pena eu não conseguir encontrá-lo nos sonhos. Seria bom conhecer e reconhecer você. Mande notícias, por favor. O espaço para comentários aqui está sempre aberto.

14 novembro, 2009

Assinado eu

[Inspirado num sonho e na voz da Tiê]

Um sonho recente ainda me instiga. Você estava nele. Quanto tempo nos falamos, quiçá nos encontramos, não é verdade? E, de sobressalto, como quem não quer nada, eis que você me surge inesperadamente. Eu estava vulnerável. Não pede licença, não chega de mansinho e, como de hábito, causa pertubação. Incomoda não por causa de sua mania de querer se exibir sempre. Incomoda porque me fez suscitar as dores e delícias de estar ao seu lado. Me fez sentir saudade. Estava sentindo falta de quem eu ainda não tinha -- e você, por alguns instantes, tive ao meu lado. A falha, neste caso, dói mais que a falta. Por que não bateu a porta? Deferência, de minha parte, nunca lhe faltou. Já lhe estendi tantas vezes meu tapete vermelho. Sei que algumas decisões minhas soaram a você inaceitáveis. Eu sei. Mas nem por isso pense que o sonho é o melhor ponto de encontro para nós dois. Prefiro o tete-a-tete, olho no olho, como aquele dia na avenida. Lembra? Ainda sigo a direção que meu coração ordenou, mas espero sinceramente que essas nossas paralelas ainda se cruzem por aí.

07 novembro, 2009

Ladeira

Caro Daniel,

A ira um dia lhe irrigava as palavras, que brotavam em profusão dentro da velha casa. Hoje já não há mais tanta raiva. Talvez tenha sido drenada para algum canto aí de dentro, apêndice pronto a eclodir a qualquer momento. O que circula então pela liquidez dos sentimentos? Não sei – e exatamente essa dúvida deve estar atordoando-o. Só não permita entravar-se diante da interrogação. Ainda é possível acreditar nos seres humanos, a começar por você, que ainda personifica a risada quando está no meio dos populares. Não se deixe mudar na solidão. Converse comigo. Saiba que eu estou sempre aqui para compartilhar com você o peso contumaz de bancar quem você desejou ser. O caminho começou a ser trilhado, meu caro, não tente dar para trás. Caso tenha se cansado, pare um pouco. Parar nem sempre é sinônimo de estacionar, lembre-se disso. Não queira ser sempre a lebre da história, pois nunca se sabe o quanto nosso peito suporta o ritmo ofegante da ladeira. Sim, Daniel, estamos numa eterna subida. O reto não tem mais graça. Por isso, a derrapagem pode ser mais dolorida, mas nem por isso irrecuperável.

Conte com o bom e velho amigo aqui,
Daniel

05 novembro, 2009

Terceira margem

Conta uma lenda iorubá que, para chegar ao Supremo, deveria-se perpassar antes por uma espécie de nove céus. Todos eram comandados por uma rainha, dona dos ventos e das tempestades. O dia estava claro naquele dia, mas a menina insistia em descobrir o que havia depois do azul. Olhava insistentemente para cima e nem se incomodava com a luz do sol batendo reta em sua vista. Queria porque queria ir mais longe só com o olhar. Era quieta e observadora a moça, mas não ia muito além na suas inserções com o céu. Chegava até à terceira margem, talvez, daquelas delineadas pelos ancestrais em priscas eras. O resto era só um clarão, que lhe embaçava os olhos tamanha a intensidade da luz vinda do alto. Passaram-se algumas horas, e a menina se cansou. Já era crepúsculo, o rosa pincelava a tintura azul do alto. Foi quando um sopro de vento cantou no ouvido da menina. Era a tal rainha. Feche os olhos, disse-lhe, no seu quarto. À noite eu a levarei para onde quer chegar. Eis o momento de atravessar todas as nove fronteiras que pairavam sobre sua pequenice e de contemplar a imensidão um dia desenhada em seu caderno. Ela e o Supremo se encontrariam nos sonhos e devaneios de quem só buscava uma explicação para a grandeza da vida. Nessa noite, depois de atravessar a tal terceira margem que tanto parecia limitá-la, a moça dormiu mais feliz do que de costume. Sentiu-se leve, como há muito não ousara se permitir.