30 abril, 2008

Armas e incêndios



Nunca tive a pretensão de ser bombeiro, nem no recôndito da infância, quando ser herói era sinônimo de honra e poder. Gostava era mesmo dos estratagemas montados diariamente, eu e meus bonecos inseparáveis, dos mais variados tamanhos, acessórios e vestimentas. Era com essas armas que eu inocentemente vestia naquela época.

[...]

Lembro-me da sensação de queimado por uma ou duas vezes. Engraçado, porque o que me vem à memória não é a recordação da dor ou as imagens da vermelhidão que marcou a pele. A lembrança mais forte é a do tempo que a mão encostou no forno até o primeiro “Ai”, segundos depois. Esse intervalo, em que a dor ia delimitando passo a passo seu território, é o que mais me marcou com o passar dos anos.

[...]

Já disse uma vez: não sou sempre esses fogos de artifício que muitos acham que espocam no céu. De qualquer forma, acho válido estar disposto a ajudar e dar a devida porção de amigo. Mas aqui eu confesso: detesto ter sempre que apagar o incêndio alheio, que não me pertence nem me diz respeito, mas que a mim surge de forma avassaladora, abafando na boca meu “não” diante da magnitude da chama. Preciso novamente me vestir das armas, sejam elas de Jorge, como canta a música, ou as dos meus bonequinhos de criança. Ou que seja ao menos um pano molhado, para ver se ameniza o calor dessas recentes e fortes emoções.



[Texto feito às pressas, em forma de desabafo, sem muito pensar]




27 abril, 2008

Às margens da alegria

Praia do Leme, Rio de Janeiro
[Foto: Google]


Em dias de nervosismo, quando penso que não deveria ter levantado da cama, o melhor é ir ao encontro do mar. É nas águas que eu desopilo um pouco os pensamentos esfumaçados pelos descontroles da mente. Lá eu faço minhas rezas, orações, agradecimentos e também alguns pedidos a quem de direito reserva às águas sua morada mais majestosa.

Seja na marola do raso ou nadando mar adentro, seja com ondas brandas ou mais revoltas, eu sempre me acalmo depois de um mergulho, com direito ao clichê “dos pés a cabeça”. Sim, porque eu gosto mesmo é de sentir as ondas passarem por todo meu corpo, como quem leva para a terra as maleitas e problemas criados por certas picuinhas a que nos apegamos. O azul acalma, dizem os colorimétricos. Eu reforço: o azul sublima os olhos e a alma.

Mas, em dias de ressaca no Rio de Janeiro, é preciso antes pedir licença para pisar sobre a bruma que sobra na areia, depois de uma sucessão interminável de ondas quebradas no horizonte. As águas são quase sempre imprevisíveis e tocam você sem prévio aviso. O corpo até responde depois, com certo cansaço e dores gostosamente suportáveis.

No mar, eu me sinto renovado. No mar, eu estou às margens da alegria.


[No iPod, de plantão no trabalho, escutando “Das maravilhas do mar, fez-se o esplendor de uma noite”, samba-enredo da Portela de 1981, lindamente composto e cantado por David Corrêa. Tempos depois, Bethânia o recupera em “Mar de Sophia”, numa versão que revigora a alma. Veja aqui ou confira a letra abaixo]



Deixa-me encantar
Com tudo teu e revelar (lá, rá, rá)
O que vai acontecer
Nesta noite de esplendor
O mar subiu na linha do horizonte
Desaguando como fonte
Ao vento a ilusão teceu
O mar, oi o mar, por onde andei mareou, mareou
Rolou na dança das ondas
No verso do cantador

Dança quem tá na roda
Roda de brincar
Prosa na boca do tempo
E vem marear

Eis o cortejo irreal
Com as maravilhas do mar
Fazendo o meu carnaval
É a vida a brincar
A luz raiou pra clarear a poesia
Num sentimento que desperta na folia
(Amor, amor)
Amor sorria, ôôô
Um novo dia despertou

E lá vou eu
Pela imensidão do mar
Esta onda que borda a avenida de espuma
Me arrasta a sambar





22 abril, 2008

Estofo



Sabe, seu moço, o estofo que vai revestir aquele assentinho antigo ali, velho mesmo? Então, faz três semanas que não está pronto. Um senhorzinho que mora naquela casinhola, lá em cima do matagal, sabe quem é? Então, noite vai, noite vem, ele toca sempre no assunto, falando sozinho de canto a canto da varando: “Cadê a minha cadeira? Eu quero me sentar! Quero descansar!”. Foi o que contaram na esquina.

Não se fala em outra coisa: onde está o raio da morada que aquele corpo já encurvado procura para suas horinhas de descanso? É essa cadeirinha aqui? Ave Maria, homem de Deus, corra logo com esse serviço! Virgem Nossa Senhora, deixa eu pôr a mão na boca pra dizer isso, tenho que falar baixo: o danado do velho tem fama solta de rogar mandinga por aí aos atrevidos que não seguem o ritmo dos seus quereres. E é coisa braba, meu senhor, coisa braba mesmo, difícil de se endireitar com qualquer reza frouxa. Eu me pélo todinho só de pensar nas maleitas dele que contam por aí na vizinhança.

Dizem que ele é doente, coitado, que está mal das pernas mesmo. Mas ainda tá vivo e gritando dentro de casa. Vá, homem de Deus, trate logo de se adiantar! Endireita logo esse assento velho e se livra disso. Oxalá nada te aconteça demais. E que esse senhorzinho fique descansando na sua paz.



“Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”
[Guimarães Rosa]


21 abril, 2008

Arrefecer



Minha explosão acontece quando menos eu espero ou posso controlar. Vou guardando aqui e ali, dia sim e dia também, até encontrar neste labirinto aqui que vos fala uma saída qualquer para despejar um tanto da ira contida, cultivada e guardada por tempos. Os mais incautos podem até me alertar que esse tipo de raiva só faz mal, pererê-pão-doce e etcétera e tal. Mas eu peço licença, me desculpo e defendo: acho importante, sim, o ranger dos dentes por, pelo menos, cinco minutos. Até deixar o sol raiar no dia seguinte.

Eu espero até um equinócio, solstício ou a translação se for necessário, mas cadê que essa bola de fogo entranhada aqui dentro sai? Quando mesmo é que ela vai ser expulsa ou expelida, cuspida mundo afora? Repito: quando menos eu espero, numa situação tosca e banal do dia-a-dia, em que faço valer a herança calabresa da família, empino o nariz e estufo o peito para engrossar a voz e, enfim, trovejar meu palavrório por aí.

Forma de defesa? Pode até ser. Coisas do signo? Concordo em tese. Santos que não batem? Acho possível também. Mas eu confesso que gostaria de canalizar parte da ira, já devidamente filtrada e processada pelo bom senso, na hora exata em que ela é animada aqui dentro, a quem é de dever e de direito ouvir.

Que bom que, mesmo com o peito em que pulsa no calor às vezes ardido do coração, você entra no carro e canta seu ritmo. Isso me silencia e me faz sorrir. Me faz ouvir a expiração. Com o perdão do trocadilho, você é um tremendo balde de água fria nessa incandescência que bate aqui dentro. E eu adoro me chafurdar nas águas arrefecedoras que você me benze.

[...]


Entre as coisas mais lindas que eu conheci
Só reconheci suas cores belas quando eu te vi
Entre as coisas bem-vindas que já recebi
Eu reconheci minhas cores nela, então eu me vi

Está em cima com o céu e o luar
Hora dos dias, semanas, meses, anos, décadas
E séculos, milênios que vão passar

Água- marinha põe estrelas no mar
Praias, baías, braços, cabos, mares, golfos
E penínsulas e oceanos que não vão secar

E as coisas lindas são mais lindas
Quando você está
Hoje você está
Onde você está
As coisas são mais lindas
Por que você está
Onde você está
Hoje você está
Nas coisas tão mais lindas

[“As coisas tão mais lindas”, na voz de Cássia Eller. Uma das faixas que tocam no carro]



17 abril, 2008

Sobre tubarões e leões



“O medo é o companheiro do homem. Ele está sempre ao nosso lado. Temos medo de falar, medo de ser, de respirar, de pensar, de agir. Mas o fato é fazer o oposto: fazer com confiança. E a gente se atira e faz de cabeça”.
[Bibi Ferreira]





Quando criança, um dos meus medos mais latentes era de tubarão. Nunca vi um deles de perto. As imagens sempre me vinham pelos filmes da madrugada, quando mamãe e eu dividíamos o colchonete e o cobertor na sala assistindo à TV de cores parcas e às intermináveis seqüências desse devorador que cismava em ser protagonista das minhas escuridões.

Como bom filho único, fui conduzido de maneira exímia ao mimo e ao colo dos pais para coibir de vez meus medos. A ponto de, ainda moleque, eu dizer para eles que embaixo da minha janela morava um leão, solitário no circo, e que toda noite ele ronronava sobre o parapeito do basculante do quarto. Chantagem eu não sei, mas o resultado foram anos e anos dormindo numa cama provisória instalada no quarto dos pais, sempre a um nível abaixo da cama deles para, claro, não participar de certas intimidades que não me cabiam (apesar de eu nunca negar os ciúmes quando flagrava qualquer esboço ou reação, digamos, no andar lá de cima).

Os tubarões e leões me conduziram à adolescência, também marcada pelos temores típicos da idade. Foi quando eu percebi – mas só hoje me dei conta – da presença fiel do medo que nos acompanha dia a dia. Era um medo que tomava a forma abaulada da interrogação: como se portar na escola? O que dizer aos amigos? Para que jogar futebol? Quem vai sair na salada mista? Quero pêra, uva ou o serviço completo? Esses e outros questionamentos ficaram ali, sentados num banquinho do salão, esperando a vez para que as respostas puxassem-nas para dançar ao seu próprio ritmo e intensidade de ser.

Passado certo tempo, a vida me deu de presente uma caixinha de música, que hoje uso para guardar alguma dessas lembranças de dez, vinte e poucos anos atrás. Elas se apresentam ora resignadas, ora um tanto afloradas quando a caixinha é aberta e o som das reminiscências preenche meu quarto com trilhas de saudade. E de medo também, reconheço. Afinal, quem disse que eu deixei de temer os tubarões e os leões? É que eles não cabem no regalinho musical. Preferem se acomodar mais à vontade dentro da minha mente.


[Ou, como os senhores podem ver na foto que ilustra este post, no vidro do carro. Sempre quando criança achei que o tantinho de água que sobrava do movimento do pára-brisas era a barbatana do tão temido tubarão que me assustava nos filmes. O mau tempo no Rio de Janeiro me fez lembrar, com certo regozijo, essa criança encucada de outrora]



13 abril, 2008

Prezado



Prezado Daniel, como vai?

Há tempos você quis me esconder de mim, mas já não dá mais, não é verdade? É chegada a hora de nos conhecermos. E eu resolvi me apresentar hoje porque vi que, nesses últimos dias, o quanto você estava agitado.

Sua ansiedade era medida por um esfregar forte e contínuo das suas mãos. Tudo bem, eu sei que esta é uma de suas manias quase intransponíveis, mas nem adianta argumentar que se trata de um cacoete herdado da mãe. Sei bem que o é, mas desta vez você o potencializou, meu caro Daniel, como uma forma, acho eu, de não conseguir conter no corpo a energia que te inquieta aí dentro.

Não me vem ao caso perguntar o que, de fato, aconteceu. Você deve saber melhor do que eu, suponho. Mas vim aqui lhe ceder um ombro amigo e, quem sabe, bater um samba antigo, como canta nosso bom e velho Chico, para rememorarmos juntos a leveza que à vida é bastante característica.

Como não acredita que isso seja possível? Claro que sim, meu caro. Inclusive eu bem sei que você já experimentou desse espírito leve em vários momentos da vida. Lembra, anos atrás, as corridas de pique quando criança? As mãos enfiadas na terra, sujeitas a toda sorte de doenças, mas também à alegria de tocar a natureza, tão distante do seu apartamento no sétimo andar?

Lembra o rosto molhado com a água da mangueira, o cheiro doce do bolo quente feito de tardinha pela sua avó? E os seus bonecos? Ah, eu ainda posso vê-los, todos ali no quintal, devidamente prontos para guerrear com você a mais doce das batalhas infantis: a do tempo, que insiste em passar e a gente, às vezes não se dá conta.

Então, se acalme, Daniel. Relaxe, como diriam os neo-terapeutas de plantão. Não deixe que os outros aí da rua ao lado te aperreiem com picuinhas do dia-a-dia. Nem se deixe abater demais no seu próprio ringue. Sei que você às vezes é briguento, marrento e orgulhoso. Não precisa tanto. Apenas respire.

O quê? O ar está pesado demais? Nada disso. Vamos lá, nade para cima. Saia dessa morada azul-marinho do seu oceano e venha celebrar comigo a alegria de poder respirar a leveza fora d’água. Mas se o medo o acompanhar na travessia até o ar livre, lembre-se das palavras de quem você tanto admira, João Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Portanto, nada de frouxidão. Se ainda sim achar que as dificuldades persistem, deixe de dormir duas horas nas suas tardes depois do trabalho e encare a correnteza com coragem e firmeza. Garanto que lhe será favorável na chegada. Pode acreditar.

E conte comigo. Sempre.

Boa sorte,
Daniel, da velha casa.

12 abril, 2008

Mitos


No candomblé, a pessoa morre e nasce para viver uma nova vida, agora caminhando ao lado das entidades espirituais. Para tanto, é necessário “entregar” a cabeça, de forma que ali passe a ser agora a morada do santo protetor, num rito transformador de entrega de sangue, resignação, morte e renascimento.

[...]

Quando me dei conta, eu já estava todinho entregue a você. Feitiço? Não sei. Talvez eu confesse que sempre quis um dia provar do seu mel, para ver se ele era mais doce do que o cheiro que se exalava no salão quando do nosso encontro inicial. A cabeça eu não preciso nem dizer: ficou entorpecida. Nada entrava ou saía à mente desde nosso primeiro olho-no-olho.

Tudo ali começou meio como samba de breque e carnaval. Isso, claro, até a porta do quarto se fechar, porque depois éramos apenas dois corações batendo como atabaques, louvando em batidas fortes o amor como uma das mais divinas criações. Éramos ao mesmo tempo lama, suor, vento, água e fogo, tudo misturado à nossa própria alquimia. Corríamos e congelávamos juntos, contemplando a excelência divina que era fundir dois corpos num só.

Desde então, passei a me vestir mais de branco, para celebrar com todas as cores a alegria de ter o peito renascido ao seu lado. Mesmo diante de nuvens e céu cinzento, sei que a tempestade tem seu fundamento e sua razão de ser. E que, como os próprios mitos contam, depois de chafurdados pela chuva de lágrimas que nos benzeu depois de toda aquela conversa, tenho fé de que encontraremos juntos, de mãos dadas, um arco-íris reluzente à nossa espera.




11 abril, 2008

Talvez

Toda essa vontade de desabafar, esse palavrório que se emaranha como fogo ainda não-cuspido aqui dentro, me cansa bastante.

Talvez seja melhor um cigarro, para expurgar pouco a pouco na fumaça um certo pesar que acordou comigo hoje, antes de vir trabalhar.

Talvez eu devesse mirar a janela por detrás do vidro e contemplar a chuva que cai forte sobre o Rio de Janeiro. Quem sabe perder meu olhar de vista ou até abrir a porta e me chafurdar na água.

Talvez eu queria encontrar mais palavras para escrever, mesmo que eu não consiga fugir do lugar-comum quando o assunto é o amor, seus desdobramentos e ressentimentos.

Talvez eu pudesse quebrar um espelho e atirar todos os cacos para o alto, para ver se rasgo esse meu céu negro e nele crio estrelas fulgurantes, mas confesso que temo os sete anos de azar.

Talvez eu apele para os deuses e deusas que um dia nos criaram, mas não quero me ver esbaforido por aí e me perder no caminho até o cume da montanha, que nos aproxima um pouco mais de suas moradas no alto.

Talvez eu tenha que ficar um pouco sozinho, mas não sei mais conviver com as mesmas músicas, o mesmo incenso, as mesmas cartas do tarô e as mesmas paredes.

Talvez eu precise mesmo é dos olhos-nos-olhos do Chico, mas não sei se quero encarar agora, tète-a-tète, o meu real cansaço com tudo isso.

Talvez seja melhor esperar um pouco. Pelo menos, até você, de fato, se manifestar.

[...]




“Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?”
[Fernando Pessoa, Álvaro de Campos]





[Quem quiser conhecer mais sobre a velha casa, fica o convite para ler uma conversa bacana que tive com o pessoal do Entre Vistas.]

Majestade


Nunca escondi minha vocação de ser mais real que o próprio rei. Mas também faço por onde: trato você como uma verdadeira majestade. Não me importo de estender meu tapete vermelho, entregar-lhe o cetro maior que sua própria altura ou procurar as mais preciosas pedras da sua coroa. Mas eu confesso que também muito me agradaria se o mesmo fosse feito do outro lado – ou mais até, numa competição saudável e sem exageros que só estimularia nosso amor. Infelizmente, não me sinto à vontade em lhe pedir ou decretar certas demandas. Nessas horas, tenho que ser britânico e respeitar os horários, agendamentos e posicionamentos do seu coração, que volta e meia esquece nosso trono ali, vazio no salão oval, mesmo diante da minha presença, que se vestiu das mais nobres vestes para ver você. Mas, como dizem além da sacada: “É melhor esperar sentado para não se cansar”. Só não se esqueça: eu não sou homem de protocolos. E gosto de ser cortejado. Muito. Portanto, ainda que com certo cansaço e um tanto resignado, faço aqui meus votos de que suas mirras e oferendas me sejam ofertadas, independentemente da sua natureza. Quero ver chegar o dia da minha folia de rei. Até eu me levantar de vez do trono e ir à forra com o povo.


“E muito pra mim é tão pouco
E pouco é um pouco demais”
[na voz de Maria Rita]



[Quem quiser conhecer mais sobre o escriba aqui que vos fala, fica o convite para ler uma conversa bacana que tive com o pessoal do Entre Vistas.]

10 abril, 2008

Grafite

Eu gosto do amor feito à mão. E quero muito lhe esboçar um bilhete, desenhar seu rosto no papel, preencher com o vazio da folha os traços desse olhar que tanto me acalanta. Os primeiros rabiscos até que saem, mas confesso são parcos. Eu tento, escrevo novamente, pego a borracha se errar, jogo papéis e mais papéis amassados na lixeira, rabisco daqui e ali, mas a grafite da lapiseira só se fez quebrar. A escrivaninha é testemunha. Nem adiantou pegar o velho lápis amarelo dos tempos de colégio, guardado no estojo. Mal se apoiava na mão de tão gasto, e sua ponta já estava bem fraquinha. De caneta eu já não tenho coragem de arriscar – como fazer com as rasuras? Acho que preciso mesmo é dar um desconto às mãos, que têm sido mais carregadas nessas últimas semanas, quando o assunto em pauta é você. Por isso que a grafite não dá conta e sempre se quebra sobre o papel. Não que ela seja fraca. É a mão que, por ora, tem sido pesada demais.


[Quem quiser conhecer mais sobre o escriba aqui que vos fala, pode ler uma conversa que tive com o pessoal do Entre Vistas. Apesar de estar mais acostumado a perguntar do que ser perguntado, foi uma experiência bacana]

08 abril, 2008

Pelo olho mágico



O corredor está vazio. A luz continua acesa nesta manhã. É automática, acende sozinha. Essa minha vida essencialmente descritiva procura nos detalhes mínimos do cotidiano cada quadro dos 24 necessários para manter em movimento linear esse filme que é nossa vida. E o olho mágico ali na porta confesso que nunca fez muito sentido, porque ele só emoldura, dia sim dia talvez, a visão da minha vizinha da frente. É uma senhora que quer porque quer insistir numa amizade entre sua cadela e a minha vira-lata de dentes sujos. Mais ninguém. Raramente batem na minha porta.

Pois, senhores, eis que um belo dia, quando menos se esperava, a campainha tocou. O prédio não tem porteiro, tudo aqui é meio ao Deus-dará: entra quem quer e sai quando pode. É perigoso, mas não me dá medo. Tenho a salvaguarda do terceiro olho, esse mágico instalado na porta, que já não consegue mais esconder sua condição vetusta na sua retina de vidraça, com a lente já sem foco e as ferrugens à mostra.

Como ia dizendo, a campainha tocou, embora no olho mágico a visão continuasse a mesma. Era o corredor vazio com a luz acesa na manhã. Quem é, perguntei. Sem resposta. No chão, um velho clichê: um envelope sem destinatário, CEP ou remetente. Dentro, estava um papelzinho escrito à mão, de caneta preta e letra pequena, levemente desviada para a esquerda.




Oi

Deixe-me entrar, sou eu.
Desta vez, vim sozinha.

O amor pede paciência.
Avisa que não está com pressa.

É para você esperá-lo em
silêncio.

Vida.



Não entendi. Quem é essa pessoa de quem eu nunca ouvi falar? Desconheço por completo. Abri a porta com certo medo para ver se, pelo menos, pegava alguém no elevador, mas nenhum vestígio do carteiro do porteiro ou de mais quem quer que fosse.

Tranquei tudo e fui me deitar intrigado. Só então, com a mente repousada no travesseiro, meio embalado pelo sono, é que me dei conta do recado. Levantei correndo e voltei à porta, desta vez atônito e esbaforido. Nossa, eu disse, como só agora eu pude dar conta de que havia instalado erradamente o olho mágico? Tudo errado, tudo ao contrário.

A vida que assinou aquele recado tentava abrir sua porta para mim. A visão que eu tinha por meio do olho era reflexiva. Era o interior da minha casa, com o corredor vazio e a luz acesa de manhã. Momento de silêncio, momento de resignação. Olho-recado-olho-recado e um breve esboço de sorriso. Tudo numa só seqüência de curta-metragem. Todos os 24 fotogramas congelados em seus próprios segundos de cena na tela.

Pelo menos naquela hora, o recado deixado na porta me fazia companhia na velha casa, nem que fosse para lê-lo repetidas vezes. Até que toquem a campainha ou que resolvam bater à porta novamente. Assim, pude deixar o olho mágico, já combalido pelo tempo, com seus sinais de cansaço, desfrutar de certo repouso em sua morada perene.


[Texto antigo e revisado]


06 abril, 2008

Serpente



Conta uma lenda iorubá que a serpente engole o próprio rabo para indicar: eis ali o início e o fim de um ciclo. E é assim que encaro essa relação nossa: a de uma ciranda só de nós dois, agora sem um ritmo uniforme de outrora. Uma ciranda antes embalada com juras de amor e que hoje roda entre si sem mais as cantigas da nossa infância.

Meu coração já não bate mais naquele descompasso gostoso quando te via durante os primeiros encontros. Ele agora é um músculo perene, sereno, calmo. E já não é a primeira vez que te falo isso: a calmaria me incomoda – e muito. Eu preciso de agitação. Não quero mais me banhar na marola do mar. Procuro com você águas mais profundas.

Quero ao teu lado ir mais longe. Rodar, rodar, rodar até encontrar o cerne de um mundo que estamos construindo. Quero ver o fogo que existe no epicentro da terra em que pisamos e onde plantamos um futuro a colher. Quero rodar com você não mais de mãos educadamente dadas, como se vêem nos bancos da praça, e sim de braços agarrados um no outro, arrepiados com a ascensão e queda da roda-gigante, que nos alterna entre a morada mais alta do céu e o chão tenro e maduro do nosso amor.

Da serpente, fico com os movimentos cautelosos, a sabedoria de sua defesa, o tato sobre o solo do seu corpo e a experiência das mordidas. Quanto ao veneno, tenha certeza, desse já fomos vacinados. Pela vida.




05 abril, 2008

Personas


Em parceria com a menina [P], do Segundas Intenções


Eu prefiro a meia-luz ao breu total, sempre. Gosto de observar seu semblante, seus olhos virados e aquele cantinho do dente que escapa à sua boca frouxa. Sim, frouxa, aberta, descontrolada, com menos ação e muito mais reações a se desenrolarem naquela cena.

[Eu prefiro fechar os olhos em meio à meia-luz que ele tanto gosta, sempre. Gosto de sentir seus dedos deslizando pelo meu rosto, acariciando meus lábios e excitando cada pêlo do meu corpo. Sim, prefiro deixar à mostra meus sentidos em sons descontrolados, enquanto imagino que ele esteja mirando minhas reações, aguardando a cena seguinte.]

A única resposta sintomática sua é a das mãos, que vão desenhando no tato o desejo latente de um corpo febril. “Saudade dá febre”, já dizia Guimarães Rosa – e a quentura das nossas peles avisava naquela hora o quanto de tempo nós deixamos passar até o reencontro.

[Minha resposta à quentura do seu desejo surge em forma de saliva e de língua em movimentos desconcertantes. Deposito em seus lábios toda a saudade que uma espera longa provocou, misturada agora à minha vontade de perder-me toda em sua febre de sentir.]

Foram meses de espera e de mal-entendidos. Inseguranças que só o amor, camuflado nas cores da paixão, são capazes de proporcionar. Mas ontem foi diferente: enfim, decidimos ir adiante. Enfim, decidimos deixar os rompantes falarem mais alto do que a complacência da fatídica pergunta: “Será que devemos, de fato e de direito?”.

[Ir adiante, depois de tanto tempo, é o que nos resta, de fato e de direito. Deixe suas dúvidas e apenas siga meus rastros, disposto a sentir como ainda não sentiu e matar a vontade daquilo que ainda não viveu. Venha comigo...]

E a lua foi testemunha do nosso pas-de-deux horizontal. Reluzia ali, minguante no céu, como se fosse uma criança voyeur, escondendo entre as estrelas a metade da face, mas deixando sobressalente o olho atento às maravilhas que aconteciam além do buraco da fechadura.

[Eu não queria, mas sei que fizemos inveja à lua. Sei que me perdi enquanto você reluzia no meu céu. Não sei se vou te deixar sair de dentro das minhas entranhas. Acho que moramos tão bem um no outro, que não vejo por que não surpreendermos também o sol, com todo o amor que fazemos além do que um simples buraco pode mostrar...]


04 abril, 2008

Eu, você



O guardanapo
Com seu telefone
E recado
- eu lamento
Já foi usado
No bar ao lado
Por alguém que sonha
Em viver seu amor pleno
Um amor ao quadrado



[eu, você]
[eu e você]
[eu x você]
[eu sobre você]
[eu em você]
[eu só você]
[eu sou você]
[topa?]

01 abril, 2008

Espera

Foto da :: velha casa ::


“É como se o mundo estivesse a minha espera.
E eu vou ao encontro do que me espera”
[ainda em Clarice Lispector]



Meu coração engessado coça. Ele se acotovela aqui e ali, ainda na espera daquela sua batida habitual na porta. Ou talvez de um recadinho seu, escrito em qualquer cor mais escura sobre a superfície alva do músculo intacto, que não pôde se mexer durante sua ausência. Mas a pontada por trás do gesso que molda a berlinda desse santo amor tem reverberado com certa obstinação aqui dentro.

Não é uma batida muito intensa, é verdade. Ela tem um ritmo próprio de viver. Meio que de leve, eu diria. Acredito até que esse baticumbum meu de cada dia poderia ser mais forte, caso as circunstâncias nos fossem mais favoráveis, como o renovo no sangue que tinge o estandarte do amor, as novas pulsações no peito, os batuques mais sonoros e mais graves, as ondas sonoras do seu “Eu te amo”, sem me esquecer, claro, dos brônquios ofegantes que protegem o coração nas horas mais apropriadas.

[...]

Entre tantas expectativas, esperas e ansiedades para tudo completar seu ritmo cíclico e voltar ao marco zero da nossa caminhada, fica aqui a dúvida: um coração engessado, quando ganha alta, bate na mesma freqüência que antes? Ou, como questiona o popular, será que ele continuará o mesmo?



[Dedicado à menina Marina Mah (por que má?), que sempre aponta com delicadeza em seus comentários as esperas desta velha casa que vos fala]