24 abril, 2009

Sobre o temporal de hoje

Foto: O Globo




Eu tenho um pacto com o céu. E só vim a me dar conta desse compromisso agora. Logo num dia que começou tão bonito e, de repente, virou. Fechou, como dizem. Eu também me fechei, abruptamente, sem mais nem menos.
Os deuses do tempo devem conhecer bem a liturgia que seguem para mudar o curso das nuvens. Eu é que ainda não sei bem o que fazer quando relampeja aqui dentro. Sei apenas que o tempo e eu estamos em sintonia. Chove lá fora, chove aqui dentro também, é sintomático.
[...]

Onde está você agora, menino? Está acuado? Ai, seu danado, sempre se escondendo quando ameaça faltar luz. Por que foge tanto do escuro assim? Medo do barulho do trovão? Vamos, saia já debaixo dessa mesa, venha. Seja homem. Ou por um acaso insiste em ser um ratinho? Se bem que os ratos só fazem viver escondidos mesmo. Como você, definitivamente, não os é, não tem por que se esgueirar por debaixo das cadeiras para buscar proteção. Acredite no que eu lhe falo sempre: o tempo é sua guarda, basta você aceitá-lo. Portanto, nada de medo dos raios ou trovões que descem dos céus. Eles vêm de tão longe que é capaz de perderem a força aqui mais perto. Só nunca vão admitir isso, exibidos do jeito que são...
Pois saiba que, quando um raio grita aqui perto da gente, pode ser sinal de que alguém lá em cima, na verdade, só está querendo protegê-lo dos perigos que a terra rondam. Esta foi a forma encontrada para sua salvaguarda, meu caro. A gente nunca sabe, tampouco dá valor, de tudo o que acontece à nossa volta. Pense no céu como seu melhor amigo. É confidente, marca sua pele em dias de sol forte, lava sua alma quando chove e você esqueçe o guarda-chuva. Não precisa tapar o espelho. Nada de mal vai lhe acontecer, prometo.
Ora, não seja teimoso. Dê cá sua mão e vamos em direção ao quarto. Você precisa tentar dormir, não tem razão para ficar espremido aí, pricipalmente depois de sua mãe chegar. Vamos, troque essa roupa e deite tranquilo. Sua cama o espera tenra e macia. Tente descansar um pouco. Só assim você se desprende dessa tempestade toda que atende pelo nome de você.


[Ou seria eu? Ou seríamos todos nós?]

19 abril, 2009

De / Para


Amiga Clarice,

Cá eu estou novamente, mais feliz do que na última vez em que nos falamos. Ainda sinto por certas ausências, mas a leveza começa a sair de seu crepúsculo habitual para aqueles que, como eu, ainda estão com as almas em formação. Sim, cara amiga, esta é uma preocupação minha: instrumentar os sentimentos para lapidar a alma. Instrumentar no sentido de dominar. Tarefa absolutamente pretensiosa para quem se autodefine como um turbilhão -- veja bem, eu me defino, não os outros. Ainda visto a couraça da placidez, mas algumas pessoas no olhar já conseguem romper alguns dos nove céus que encobrem esse infinito meu, tantas vezes esmiuçado por seus escritos.

Estou terminando o "Aprendendo a viver", título sugestivo para os que têm a alma em formação. Mas não é sobre os livros que vim aqui lhe escrever. Simplesmente porque, diferentemente de ontem, hoje eu acordei mais alegre. Acho que, diante de tantas cartas lacrimosas, esta também deixaria seu domingo um pouco mais contente. Gosto de compartilhar minha felicidade -- e, desta vez, não há nada de clandestino nisso. É lícito, legal, está dentro das leis e regras (existem de fato?) de quem deseja, minimamente, ser feliz consigo mesmo e com o próximo.

Tenho voltado a assistir a algumas missas na Igreja dos Capuchinhos, ao lado da imagem de São Miguel Arcanjo. Tenho profunda idenficação com esse santo, embora não saiba lhe explicar muito bem o porquê. Coisas do que aqui chamam de espiritualidade. Eu prefiro a concisão: trata-se de coisa minha. Fico ao lado dele e ali, quase que aos seus pés, faço minahs preces por dias ainda melhores. Assim como você, Miguel parece estar ao meu lado.

Encerro esta carta lhe enviando uma foto, um santinho como chamamos aqui, para você guardar em sua bolsa. Não precisa agradecer absolutamente nada -- não é favor. É de gosto, de coração, como dizia minha saudosa avó.

Boa semana para você.

Um beijo,
Daniel

18 abril, 2009

Serpentina



Todo carnaval ela gostava de jogar serpentina. Mais do que confete até. Não era muito afeita a chuva. Preferia a ideia de desenrolar o fio folião para, quem sabe, ver se conseguia enlaçar alguém, alguma história, algum amor perdido pelas ruelas de sua terra natal. Era sua forma de gritar ao mundo em silêncio, externando por meio do cachinho de papel a vontade de viver novamente aquilo que um dia fora perdido no tempo, na memória, nas mágoas e medos de quem só desejou ser feliz e mais nada. Ela cerrava bem os olhos, lançava a sorte para o alto e esperava, sorrindo, quem iria lhe dar retorno. Puxá-la ao centro do salão para a dança mais importante da noite. Descortiná-la no meio da multidão, como nos filmes em que a surpresa acontece à primeira vista, ainda que todos estivessem mascarados. "Quem é você, diga logo, que eu quero saber do seu jogo", escolheu como trilha sonora para embalar sua folia. A serpentina era a máscara da moça, a forma como ela escolheu para conjugar junto ao mundo a singeleza do verbo recomeçar. Pena que, todo ano, ceifavam aquele espiral de papel sem muito pestanejo. E a menina, desavisada que só, acompanhava o cortejo na calçada, cantando com a voz sussurrada seu samba antigo. Mesmo interrompida pela ação do desconhecido, seu sonho era mais otimista do que ela e a fazia sempre sacar da bolsa mais um rolinho de papel pronto para ser atirado ao léu. A moça não desanima mesmo, sobretudo em dias de carnaval. Faz da serpentina a serpente que morde seu próprio rabo para indicar: eis o fim e o início de uma história. Por isso que o carnaval, mesmo sem um novo par para variar a dança, é a época em que ela se sente mais feliz.


"Quem dera que a vida fosse assim / Sonhar, sorrir / Cantar, sambar / E nunca mais ter fim" [Imperatriz Leopoldinense, 1981]


17 abril, 2009

A Nina


Nara Sales disse...
Ultimamente, eu tenho andado sempre por aqui. É tão sentimento, tão alma, tão livre. (...) Apesar de, ser uma "Velha Casa", restaura-se todos os dias.

 
Querida Nina,

Aqui é meu consultório. Já foi diário, semanal, mensal. Já fugi dele e agora estou às voltas na porta da velha casa, abrindo portas e janelas para entrar um pouco de vento. Vento. Movimento. Meus sentimentos me movem a escrever. Angústia de quem precisa desabafar, cuspir, desencapar o fio do curto-circuito. Não quero mais entrar em choque com o silêncio. Preciso falar. E aqui é meu espaço. Por isso nem a opção de parágrafo hoje (obrigado, Saramago). Não sou muito diferente do que esta tela de computador hoje nos faz distanciar. Não por opção (quisera eu): é que eu não sei mentir. Fica estampado, em néon, na testa. Mas me esforço em disfarçar o desconforto, seja comigo ou com alguém -- amigos, amores, família. A velha casa é como se fosse minha casa na árvore. E árvore, pra mim, tem sentido religioso -- símbolo de força, morada, caminho. Raiz. Solidez. Árvore é meu pai. Ele mora na velha casa. Minha mãe é um rio. Eu me transbordo na velha casa. Logo a velha casa é o que busco pra mim. Por isso, faço questão de renová-la. Nem que seja com um papel na porta, preso no prego enferrujado, cantando como Clara Nunes: "Vou morar no infinito / E virar constelação" -- lá fica meu sótão quando quero pedir cinco minutos do mundo. Penso que estamos sempre em fase de restauração. Minhas feridas não se cauterizam, porque estou sempre com o dedo nelas. Mas também só me permito cutucar. Hoje posso dizer que mais ninguém. Isso é restauração constante. É como lustrar a madeira sem fazer com que a madeira perca o cheiro de usada. É manter o sofá com o descolorido do estofado, ou servir a xícara com certa pintura desbotada.
[Agora talvez caiba um parágrafo]

"Eu sou assim, quem quiser gostar de mim, eu sou assim", me ensinou Paulinho. E assim, como disse num texto recente aqui, sigo a vida.
[Mais uma pausa educada para o gole do capuccino]

Seja sempre benvinda à velha casa.
Apareça quando quiser.

Um beijo,
Daniel

16 abril, 2009

Ângelo


Quando a dúvida lhe acometia, ela não tinha dúvidas: consultava sua melhor amiga, aprendiz de cartomante que gostava de desfilar suas cartas pela mesa branca que tinha na sala. Sempre recorria aos personagens nas primeiras horas de aflição. E ontem não foi diferente: Ângelo reapareceu. O homem ela ao certo não conhece, também nunca fora apresentada. Nem o nome de fato sabe ao certo. Pelo sim, pelo não, quis limar logo a dúvida. Batizou o moço de Ângelo, talvez pela proximidade com que ela o deificou na primeira vista. Estava ali seu tótem, objeto de veneração que tanto lhe faltava, desde os tempos de infância, quando aprendeu a juntar as palmas das mãos antes para só então olhar para o céu. Com Ângelo, as nuvens estavam sob seus pés. Ela o carregava no peito. Era seu escapulário, Ângelo frente, Ângelo verso, Ângelo corrente, em seu peito sempre presente.

A Ângelo eram dedicados toda sorte de flores, agrados e perfumes, sem pedir muita coisa em troca. Bastava só um olhar. E o sorriso que a encantara logo de cara (mas que não havia sido direcionado inicialmente à sua expectativa). Mesmo assim, preferia idealizar. Ou melhor, não preferia: simplesmente idealizava. Sonhava alto, com os jantares, uma troca de cartas ou um possível esbarrão no corredor (esse, um dia, aconteceu -- produzido por ela, claro).

O beijo não queria imaginar, embora bastasse um empurrão para logo tirar essa imagem da gaveta e ampliar na tela de cinema montada em sua mente. Queria, no entanto, se manter preservada ao inédito, ainda que já fosse apresentada às sensações quando dois corpos se tornam um ao encontro de um beijo. Com Ângelo seria diferente de tudo, de todos (que, é justo dizer, não somam muitos), do mundo. Sim, porque a ela o mundo não importava mais -- o universo necessário já estava ao seu redor. E Ângelo orbitava, ainda que sem asas, como o sol da meia-noite que iluminava seus sonhos a cada madrugada em que dividia espaço na cama com o vazio.


Chegou, pobre menina, a ensaiar como diria "Eu te amo" para o rapaz. Primeiro, ao espelho, disse Eu te amo (franziu os olhos imediatamente com medo de ouvir Também, Já sei, OK ou coisa do gênero. Ufa, nada falou a ela). Depois inventou de conjugar um verbo novo: Eu te Ânge-lo. Ângelo-o. Eu Ângelo. Pronto, mais uma vez dois corpos unidos -- nome e sentimento, um belo casamento na visão da amada.

À moça, Ângelo a bastava de certa forma, mas a menina não deixou de sentir certa aflição. Como agir? Será que devo? Melhor levantar a ficha antes. Casado, solteiro, mancomunado? Enamorado, desavergonhado, desviado? Eram essas algumas das dúvidas que povoavam a moça. E tudo isso sem cerrar os olhos, sem muitos suspiros ou unhas roídas. Eram perguntas que circulavam internamente, num trânsito vertiginoso de medos e outras sensações correlatas. Por isso, não hesitou: correu para as cartas da amiga. Quem sabe ali não se consegue ir além do que está mais do que por ela projetado?

Os arcanos não quiseram identificar Ângelo. Preferiram revelar o Eremita, nobre senhor que se apoia no cajado para encontrar seu caminho. Junto dele, uma lanterna velha que insiste em continuar acesa, mesmo diante da longa trajetória percorrida pelo viajante. Luz que pede: olhe para dentro para acordar. Quem olha pra fora sonha, já lhe diziam os psicanalistas. Deixe Ângelo no céu, avisou a amiga cartomante, anjo torto que desvia a moça de seu caminho. Melhor pôr os pés e joelhos na terra, apalpando o chão em que cada passo pisa até encontrar verdadeiramente todo esse amor perdido no breu de uma ilusão -- sem remetente, sem escova de dente, sem caixa postal.


[Moral: Lembremos sempre Guimarães: "Viver é etecétera". E tal. E ponto final]
[Da moça pouco se soube de algo depois]
[
Ângelo continua sorrindo ao mundo]

Justo hoje

Justo hoje você foi me ligar.
Logo hoje que eu não estava bem.
Logo hoje em que sucumbi ao cansaço.
Logo hoje que resolvi me fechar.
Logo hoje que eu senti sua falta.
Quando passei pela nossa casa.
E não nos vi mais lá.
Logo hoje quando deu 21h30.
Hora da janta, das nossas conversas.
Hora que eu recuperava o fôlego com você.
Justo nessa hora você insistiu em me ligar.
Hora em que a saudade resolveu apertar.

Cartesiano




Meus sentimentos são muito cartesianos.
Ou talvez a forma como eu dou sentido a eles.
Eu raciocino, penso, (des)configuro, desconstruo.
Uma forma de mini/maximizar aquilo que me ainda é turvo, opaco, sem transparência.

Eu, sinceramente, me pergunto como tudo isso despertou.
[Fala completamente pretenciosa, mas entenda-a mais pelo lado da dúvida]
Pergunto, sim, porque isso nunca aconteceu comigo.
Por isso, a dúvida. E, confesso, às vezes a não compreensão também.
Será que nunca me apaixonei?
Tenho a impressão de que sim.
Mas sou muito controlado. Ou melhor: cartesiano, linear.
Observo, vejo onde piso, antes de me entregar de todo.

[Será que eu já me entreguei um dia na vida?]

Acho que não. Minha desconfiança é minha arma. Meu punhal também.
Guardo-a nas costas. Espécie de São Jorge temendo o ataque do dragão.
Às vezes, eu mesmo me apunhalo -- sem querer ou não.
Mas prefiro (sádico) eu mesmo me machucar a ser ceifado por outra pessoa.
Sou de luta, sou de briga. Mas, antes de tudo e de todos, comigo mesmo.

Talvez isso não tenha me permitido experimentar o prazer de fechar os olhos e se doar.
Dar, entregar, como você disse, conjugar todos esses verbos.
Na voz passiva, não mais em ativa. Deixar rolar, ver o que vai acontecer.
A água lavar, a vida me levar -- sem se preocupar para onde.

Ainda não abri a catraca. Antes pago meu pedágio diário.
Sim, eu pago. Só eu sei do trânsito que corre dentro de mim.
Penitência do medo: será que vale a pena mesmo? Será que vou me machucar (de novo)?

[Por isso, antes de me pensarem em me machucar, eu já entro com a ferida na história]

Enfim, palavras soltas, mas sem pretensão de resposta.
Não sei o que responder, nem penso em determinar nada.
Como eu aprendi com meu avô, na simplicidade de suas palavras
[que podem parecer rudes]:
“Cada um sabe o que faz com aquilo que tem”.

Se eu sei o que estou fazendo? Nunca.
Talvez eu esteja agindo no automático.
Se eu sei o aquilo que tenho? Mais dúvida.
Talvez eu tenha inscrito essa minha regra na minha tábula rasa em tempos imemoriais.
Talvez sejam aquelas reações sem pensar, ou sem saber por que agimos assim.

[...]

Eu simplesmente o faço.
E assim vou seguindo a vida.


Roda viva


[Sempre fiz minhas adaptações exclusivas de certas músicas. Nada proposital, é verdade. Todas fruto de uma audição precipitada, ou deficitária ou ambas. É o caso de "Roda viva", do Chico -- "Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu e não vê". Com a licença do Chico, vou dar prosseguimento ao verso inventado]


***


Tem dias que a gente se sente, como quem partiu e não vê. Eu não vi. Apenas sinto que partiu. É algo aqui dentro ainda difícil de definir. O olhar nessas horas se torna sintomático: perpassa um vazio sem o afã de encontrar qualquer placa indicando onde fica o retorno para voltar atrás e sair dessa maré baixa assoladora, ressaca de um mar hoje com muita água, mas pouco sal.

A fala, poucos reconhecem: torna-se baixa, ainda acanhada diante da chegada desse meu estado de espírito, um velho conhecido pelas bandas da velha casa. Entre uma batida e outra, o coração se trinca. Forte demais até. Talvez esquecera aquele compasso ritmado de antes, quando tinha em quem se espelhar para fazer a cada dia uma música nova com você.

Hoje esse mesmo coração bombeia o sangue para não deixá-lo correr pelo corpo nem frio demais, nem quente demais no corpo. Prefere priorizar outras áreas sublimadas desde o último baque, meses atrás, estimulando a todo o custo o sentido perdido das coisas. Prefere não deixar nada mais morrer aqui dentro.
O pobre desse coração olha sentado em seu trono instalado no peito o mundo de lá, o de fora, mas agora protegido por vidros. Estufa? Talvez. Casa de vidro? Talvez também. A única certeza por enquanto é: não quer se machucar mais. Por isso, vive hoje fechado em seu aquário sem água, sem alga, sem peixe, vestindo apenas uma couraça que ainda não o defende totalmente da transparência opaca de certa gente aí fora.

Aí não tem como dar conta mesmo. Principalmente de lavrar um motivo legítimo para a baixa repercutida em quem o carrega na vitrine instalada em seu próprio peito. Vende-se? Aluga-se? Fechado para balanço? Ainda não são essas as informações dadas pela placa na porta. Prefiro manter, ainda que a marteladas diárias, o recado de "Aberto", mesmo cansado de ver pouca movimentação interna. Sinais da tão propalada crise, talvez. Melhor pensar assim.

07 abril, 2009

Lego


Uma das lições a se aprender daqui pra frente: fazer do amor uma brincadeira, daquelas leve, de criança, das antigas. Passemos a juntar nossas peças, nossas partes, para formar um só corpo, uma só carne. Desta vez não mais como antes, porque hoje já não quero (ou quem sabe por um certo tempo) ser mais aquele dois em um de antes. Prefiro pensar agora em formas inventadas com você (mas quem é você mesmo?), variadas e infindas de poder ao final vislumbrar o sentimento nosso, objeto conjugado e contemplativo, aquele que resultou nas nossas tentativas de juntar as peças para formar nós dois. Quero não me importar mais com a harmonia do colorido. Prefiro dar um basta no monocromático. Quero desalinhar as formas, sair um pouco do reto, deixar o olho do boneco no lugar do umbigo e olhar o avesso da nossa construção. Quero diversão: rir alto com a flor e o coração que conseguimos fazer com tão poucas peças para brincar.


[...]


Um detalhe importante: você continua sendo imprescindível (pergunto novamente: quem é você?). Sem a parceria da peça sua, a brincadeira não tem mais sentido. O que eu monto sozinho, com que hoje tenho à mão, já não me serve mais. Não tenho mais inventividade para criar. Naão sei vislumbrar outras dimensões. Estou atrás de novidade. Menino pequeno gosta de brinquedo novo. E com esse brinquedo vai ser bom, porque poderemos sempre renovar, sacrificar e renascê-lo, mesmo tendo em jogo as mesmas peças, os mesmos tamanhos e as mesmas cores de sempre.


[Texto antigo, confuso, escrito num congestionamento de ideias que hoje se repete misturado a certas sensações estranhas, causadas pelo amor e suas ausências]

01 abril, 2009

No escuro



[Da noite mal dormida]



Ouço o escuro toda noite, quando desligo a TV do quarto para ver se consigo dormir. Tarefa inglória porque, além de ouvir, eu sinto o silêncio também. Acho que mais: eu tateio os contornos desse silêncio toda vez que me viro na cama, com o corpo calmo, mas o coração descompassado, ainda na vã ilusão de encontrar você por ali. Uma aparição qualquer, sonho delirante de quem está no ambiente próprio para tal. Mas os olhos enxergam mesmo que fechados: o que ficou foi um desenho vazio, pintura sem moldura, papel riscado, tela sem uma brecha qualquer para que eu possa, quem sabe, jogar uma cor nova.

Não faz muito tempo, eu fazia questão de dividir com você cada fração de segundos desse sentimento que corria meu avesso para chegar logo aos seus olhos. Maratona diária, porém exaustiva: será que não chega a tempo? Ou será que não deu pra ver que chegou? Hoje não tem mais isso. Divisão com zero não dá resultado mesmo. Não tem lógica, nem explicação. É tautológico: simplesmente não existe. Não tem mais como forçar a barra, como tantas vezes já fizemos, para ver se dá no final um número qualquer, nem que seja aquela infinidade de algarismos depois da vírgula, em que era preciso fazer uma aproximação para fechar definitivamente a conta. Aproximar de quem hoje? Estamos tão longe agora, não é mesmo? – eu e você, e eu de mim mesmo.

Por isso, eu repito: ouço o escuro. E por isso, eu reforço: esse é o meu escuro hoje, embora ainda ande de olhos vendados quando parto do meu umbigo doido para dar uma cambalhota. Quero ser criança de novo e ver se consigo me virar novamente do avesso para fazer irromper de mim essa galáxia que ainda insiste em aparecer ao mundo como mais um buraco negro no espaço. “Vou morar no infinito e virar constelação” (com a licença da Portela). Quero então me pincelar de estrelas e chamar de volta ao peito a nobre visita da lua cheia, antes tão testemunha daquelas histórias nossas e hoje a companheira quase fiel desses meus dias de noite em claro.