30 março, 2008

Bumerangue



:: IDA ::

Quero atirar um bumerangue no céu
Para ver se corto um caminho por entre as nuvens
E consigo me alumiar por um feixe qualquer de sol
Eu preciso de um contato maior com o alto
É chegada a hora de fechar os olhos e elevar-me



:: VOLTA ::

Será que o regresso do bumerangue vai ser tão retilíneo
Quanto o canal que ele me ligou junto aos céus?
De qualquer forma, sigo a esperar sentado na areia
Com o coração pleno e satisfeito
À espera de quem um dia permitiu
A alma elevar-se junto à morada dos seus próprios deuses



28 março, 2008

De / Para



Rio, 28 de março de 2008.

Prezada Clarice,

Amiga do meu dia a dia, das minhas angústias e das minhas reflexões. Volto-me aqui à sua atenção, desta vez sob a forma das palavras desabafadas. Gostaria muito aqui de lhe confessar uma coisa: eu, às vezes, forjo o sentimento para saber como vou reagir a um sopro de devaneio qualquer que visita minha mente. É verdade, Clarice. Meu pensamento continua inventado, como você mesmo já anunciara décadas atrás.

Eu já parei, já tentei, mas não consigo relaxar. A todo instante, estou pensando, tenso, preocupado, pré-ocupado, no afã de vislumbrar uma hipótese ou que pode ser remota ou que pode encarnar, quase em carne e osso, nesse mundo. Foi assim antes de eu tomar a iniciativa ontem e conversar com quem é de direito sobre os rumos da velha casa, após o corte de luz.

Pagamentos imediatos, investimento alto, isso tudo foi feito logo. Medidas práticas para seguir adiante. Mexer nas reservas, adiar planos, sublimar os sentimentos, questionar o amor. Foi uma sucessão de verbos, conjugados tete-a-tete no sofá, que se ali revelaram sob um ar de certo constrangimento. A lágrima que tanto urgia em descer não se vertia naquela hora. Por nada, Clarice, não caía por nada, nada, nada.

Sabe, minha querida, acho que havia um ali receio de que toda aquela situação, vexatória por natureza, tomasse as vestes do piegas, do mexicano, do novelesco. Por isso, as palavras foram tão breves que me encheram de sono à medida que foram proferidas. O Chico define muito bem: é o "sono dos séculos". Eu tenho muito sono, Clarice. E, depois do ponto derradeiro na conversa, eu precisava ir ao quarto imediatamente. Tudo aquilo era fruto de um "cansaço de choro mudo", como você mesma já escreveu.

Antes de dormir, depois de todo o palavrório, fui à estante encontrar a companhia dos livros que iriam dividir comigo o momento da sesta necessária. Dentro das agruras de Macabéa, encontrei uns escritos de caderno, ainda com a letra imberbe dos meus 17 anos, que tinha citações da sua obra. Uma delas foi uma espécie de presente, uma surpresa, que faço questão de aqui transcrever:


["Há um tipo de choro bom e há outro ruim. O ruim é aquele em que as lágrimas correm sem parar e, no entanto, não dão alívio. Só esgotam e exaurem. Uma amiga perguntou-me, então, se não seria esse choro como o de uma criança com a angústia da fome. Era. Quando se está perto desse tipo de choro, é melhor procurar conter-se: não vai adiantar. É melhor tentar fazer-se de forte, e enfrentar. É difícil, mas ainda menos do que ir-se tornando exangue a ponto de empalidecer. Mas nem sempre é necessário tornar-se forte. Temos que respeitar a nossa fraqueza. Então, são lágrimas suaves, de uma tristeza legítima à qual temos direito. Elas correm devagar e quando passam pelos lábios sente-se aquele gosto salgado, límpido, produto de nossa dor mais profunda".]


Não precisei falar mais nada depois de lê-la. Fui dormir mais sossegado. Foi hora de a estrela renascer num céu que deseja ansiosamente voltar a se ensolarar perante o mundo. E nem vou me estender mais nesta segunda carta a você.

Apenas quero lhe agradecer mais uma vez por estar presente em minha vida. Efetivamente.

Com carinho,
Daniel

27 março, 2008

Luz apagada



Ontem cortaram a luz da velha casa. Falta de pagamento, falta de investimento, falta de cumplicidade ou responsabilidade. Falta de tudo um pouco, acusava o papel jogado no chão da porta.

Na caixa de energia esgarçada, estava lá o fio rompido que nos uniu por tanto tempo. Era um cobre já bem gasto, é verdade, sem muita resistência, por tanto esforço que um dia lhe fora desferido. Tudo para que nada, mas nada, absolutamente nada lhe faltasse naqueles tempos da tormenta.

Mesmo com a maré cinzenta, ainda mantínhamos o controle da proa. Agora, no escuro, o rubro que nos cobre a face já não reluz como antes, quando ele ainda surgia sorrateiro por debaixo do véu.

O branco dos nossos sorrisos não foi mais suficiente para alumiar a sala apagada. Nem a lua, tão companheira, ousou tirar aquela venda que nos tapava os olhos, ainda incrédulos com todo aquele constrangimento.

E as velas, necessárias nessas horas, eu confesso: eu as usei, todas, na minha romaria de meses, torcendo para que tudo se restabelecesse. Chamas em vão, orações em vão. São os corações que se vão agora, cada qual na sua encruzilhada do silêncio, sem rumo, sem interseção.


[Aos amigos da velha casa, peço desculpas pela ausência de posts e pelo tom triste desse texto. Não sou de me expor tão claramente aqui, mas hoje eu preciso dizer: não estou bem]


22 março, 2008

Grão de areia


Sou o grãozinho de areia miúdo que se aconchega no calor dos demais em sua praia. Ao sabor dos ventanias, junto um grão amigo aqui e outro acolá para formar um montante qualquer na areia, um castelo de criança, o nome de um amor vivido, a marca da sua pegada ou, quem sabe, a lembrança das águas que por ali passaram.

Sou o grãozinho branco-camaleão, que muda de cor de acordo com os ângulos solares e da sombra, quando do seu caminhar matinal. Sou o grãozinho grosso que mostra firmeza em seu corpo, e também fino para ver até que ponto eu consigo me manter grudado em seus pés.

Sou aquele grãozinho que serve de conforto para seu sono na praia. Ele, acredite, procura até se esfriar só para ver se ameniza um pouco a quentura que sua chegada traz ao solo. O pequeno grão no mundo vai tirando ainda as imperfeições da areia, de forma a acalentar melhor o cansaço do seu amor nos alguns minutos de sua estadia ali.

E, ainda sim, você insiste em catar suas conchinhas...

20 março, 2008

Resposta



Ao amor,

Eu me inscrevo a todo momento em palavras, letras desenhadas e frases emblemáticas para lhe demonstrar a mais tenra dedicação. Mas suas respostas já não quero mais esperar.
Torço sinceramente um dia tirar esse bilhete, há anos estandarte da porta do meu quarto, e postá-lo no endereço certo. Nem que seja o mesmo destino de vários outros bilhetes dessa natureza: a gaveta do armário. Lá também moram o silêncio e a resignação.

[Escutando “New York I love you, but you're bringing me down”, LCD Soundsystem]

18 março, 2008

Insulfilm



No carro, os vidros escuros do insulfilm me protegem da curiosidade extrema que toma meu olhar. Lá dentro, parado no sinal, ouço as músicas escolhidas observando ao redor cenas de um cotidiano deliciosamente clandestino. Trata-se de um instante surrupiado de quem está à minha volta e que, ufa, sequer desconfia quem está por trás do meu aquário indiscreto.

Eu rio do que vejo e acho graça. Muita, confesso. Não por se tratar de uma situação divertida, jocosa ou digna do meu riso. Mas é por eu ter ali a plena consciência de que é possível, por um momento, apropriar-se do outro ao meu lado sem ser percebido. E eu reconheço, senhores: para mim, é sublime.

Isso porque o menino que habita minha alma, por vezes, precisa pegar seu banquinho, se escorar na janela até a altura dos olhos para ver o azul do mundo que está ao seu redor. Amparado no parapeito da sua janela, o menino festeja o ramerrame habitual das ruas e das pessoas que nelas circulam. Contemplado, ele ganha depois um soprinho qualquer do vento, que também bate à sua porta com o nome de vida.

O menino, então, sorri faceiramente, mesmo quando se dá conta de que o vidro de sua janela ainda mantém-se escurecido e blindado perante o mundo. E que as buzinas alheias insistem em avisá-lo: o sinal acabou de abrir. É hora de seguir viagem.

[Veja aqui um outro texto da velha casa sobre janela]

15 março, 2008

Marfim

:: Desfile da Mangueira em 2008 (Liesa) ::


Às vezes, eu me sinto como um elefante, que nunca cansa de elevar seus dentes, mesmo quando eles pareçam ser pesados demais para suportar. Aliás, quanto mais pesado, mais valioso meu marfim será.

Por isso, não posso reclamar do fardo. Mesmo com certa dose de tristeza das palavras coladas no portão da velha casa, é preciso suportar. Enfrentar é preciso; prostrar-se, opcional; descansar, às vezes. Cansar-se, não quero mais.

Eu reconheço, caros senhores: o sol que brilha na savana pode parecer por demais a pino. Mas eu continuo a enfrentar o caminho nessas areias, seguindo adiante, passo a passo, lenta ou rapidamente. E sempre, sempre com a exuberância dos meus marfins que ostento no mundo.



[Ziggy, amigo. Não sei se essas palavras refletem exatamente o futuro sobre o qual brevemente conversamos, mas espelham a resposta de uma alma diante de um certo pesar que os últimos posts passaram. Obrigado por aquele comentário. A você, dedico esse pequeno textinho, que une na foto uma grande paixão minha: o carnaval]


14 março, 2008

Dois andares


O alvorecer doura as janelas em que, um dia, nos entreolhamos. Eu no primeiro andar do prédio, você mais acima. O andar mais alto sempre foi o seu local mais devido mesmo, pelo menos no altar em que nosso amor um dia fora consagrado no meu peito.

Ali era o relicário de uma vida nova, guardada na caixinha de vidro que abrigava nossos santos corações. Ali estava também a luz da crença de que, enfim, céu e terra estavam no mesmo nível, no mesmo plano.

Os deuses naquele tempo eram conosco. Avisavam, por meio do vento, da lama, do sol e da água os ciclos de um amor que vigorava, que experimentava nascer e renascer diariamente, como um personagem que ainda vive os mitos da criação de seu próprio mundo.

[...]

Na janela, eu olho e você ainda não acenou. Deve estar dormindo, acredito. Enquanto você não chega, sigo alternando minha atenção para cima e para o mundo, que passa largo aos olhos, numa velocidade que impressiona. O trânsito dos sentimentos é impressionante. Só o meu que anda por ora estacionado.

Mas seu café está posto à mesa. Pode entrar sem bater. A velha casa continua sendo sua. Fique à vontade.


13 março, 2008

Poeira


Aquele cantinho nosso, perto do corredor, está empoeirado hoje. Sinal do tanto tempo que não passamos mais por ali, trazendo conosco um pouco do vento que antes nos impulsionava em cada degrau subido pela escadaria de madeira da velha casa.

Lá em cima, já no quarto, o destino é o “cada um na sua”, em seu respectivo ponto de descanso compartilhado por ambos. Ainda que juntos no mesmo espaço, cada qual procura seu reconforto em paralelo, em seus próprios cantos da cama.

Com o olho-a-olho religioso do “Boa noite” que trocamos quase diariamente, outras palavras já não são mais necessárias. Nossos gestos são sublimados pelo cansaço e coroados logo em seguida com o crepúsculo da sua luminária.

No canto de cá, o sono não desceu junto à lua sua de cada dia. E a luz lá de fora, que entra pela porta entreaberta, enfoca o espetáculo daquela poeirinha antiga, recolhida no cantinho do nosso corredor. Por um instante, meu escuro se alumia. É um palco que se acende e transforma aquele pozinho no isolado monólogo do meu amor por você.

O protagonista aqui pede apenas uma concessão: que seu diretor faça disso tudo um espetáculo mudo. É que eu não quero ouvir, por ora, o som dos seus aplausos ao fecharem as cortinas.


Mais vale o meu pranto que esse canto em solidão
Nessa espera o mundo gira em linhas tortas
Abre essa janela, a primavera quer entrar
Pra fazer da nossa voz uma só nota
[Los Hermanos]


12 março, 2008

Verbalizar


O sono insiste, o olho pesa, a luz apaga
A alma pede, a boca fecha, a garganta engole
O coração espera, Piaf canta, o telefone não toca
A noite chega, o escuro avança, a cama sua
O sonho troveja, o vento acalanta, a folha vira
O cão dorme, o despertador não toca, a pilha acaba
A sede cresce, o medo sobrepuja, o passado rememora
A angústia prevalece, o amor se apequena, o futuro teme frustrar-se


As palavras ainda me são poucas:
Você não chega e eu, mesmo assim, te espero aqui



10 março, 2008

Bem



Bem,
Reconheço aqui:
Eu me sinto bem ao seu lado
Muito bem mesmo, de verdade
Me faz bem ensaiar minhas mãos

Em fazer algo que você costuma tão bem fazer

No silêncio dos meus olhos
Eu me espelho muito
Na sua disposição inata para o bem
Mesmo, confesso, não sabendo bem ao certo
A quem você consagra todo esse esforço

A bem da verdade, eu não sei direito a quem agradar
Mas sei que, ao seu lado, estou bem
Por isso, veja bem
Entenda por que eu insisto sempre
Em bem lhe devotar a minha mão

É porque você me faz bem
É em nome do amor, meu bem
Que é o nosso bem mais precioso

Como dizem por aí, no popular
“É bem bom estar na sua companhia”
Eu lhe quero muito bem
Nos quero muito bem também

Que seja bem-vindo o amor!



[A você
Dedico as flores do bem-me-quer
Que regamos naquele jardim
Plantado na interseção dos nossos corações

Obrigado pelo fim de semana]


06 março, 2008

Poucas palavras



Aplaudo a aurora da imensidão
Mesmo em tempos de certo amargo da alma


Broto nas flores por você ofertadas
Meu azedume boreal


Benzo o voto santo das mãos sempre dadas
Na esperança de resgatar sua dignidade


Aprecio eu mesmo no horizonte
O crrepúsculo daquele nosso amor


Vislumbro sentado, ao seu lado
A imensidão da alma


Sou eu a minha própria imensidão


[...]


“Sou a alma
Sou a cara
Sou o retrato
Que retrata
O que na alma
Eu sou de fato”
[Arranco do Engenho de Dentro, 2006]

04 março, 2008

Migalhas



Os dias têm me sido de poucas palavras e mais contemplação. O olhar anda um tanto avoado, mesmo sem portar as devidas asas para migrar rumo ao regozijo da alma. E o foco se dirige a cenas de uma janela entreaberta, como as poucas migalhas que caíram do lanche naquela nossa última ceia.

Quando criança, eu sempre gostei de comer as migalhas que se desgarravam do pão rumo à toalha quadriculada posta na mesa. Com o dedão polegar, todas elas eram devidamente agrupadas, formando religiosamente um corpo, uma função para reexistirem no mundo.

Comer as migalhas caídas à mesa tinha, para mim, um quê de traquinagem própria da infância. Aquela que é imediatamente escondida pelo olho inquieto do menino que queria blefar sua travessura. E a minha tia, sempre porta-estandarte dos bons costumes, não hesitava em repreender o pequeno na ânsia de encaixá-lo novamente ao caminho do comportamento retilíneo.

Passadas tantas curvas desse tempo, o pão nosso de cada dia ganha na chapa um sopro qualquer de vida nova. Coisa breve, quase nada. Já não tenho mais paciência de esperar por certas perfeições. Mas, ainda sim, as migalhas permanecem ainda à mesa, como aquelas que você deixou no nosso último encontro. Elas ainda estavam lá, organizadas na sua própria desconexão, cada qual brilhando independente e solitária sobre o prato.

Tempos atrás, eu até teria disposição de agrupá-las num saquinho de memórias, para apostar na sorte e ver qual forma tomariam depois os farelos de minha memória. Se não quisessem configurar um corpo qualquer, eu fazia como João e Maria: colocava, uma a uma, as migalhas enfileiradas no meu eterno caminho de tijolos amarelos para, quem sabe um dia, reencontrar aquela criança de outrora, que se divertia com o dedo na boca prendendo o sorriso frouxo de sua infância.

Hoje não. No meu estado de olhar contemplativo, me causa até certa alegria em ver no que você demonstra ser a cada encontro nosso: uma migalhinha de gente, indigna de dar as mãos às outras caídas no seu prato. Que a minha tia não me repreenda dessa vez.