30 setembro, 2008

Nu no espelho



O medo de mostrar as dores era tão grande que o menino, desde cedo, tratou de escondê-las com uma aparente calmaria. Todo dia, antes de sair para o mundo, ele se vestia com uma tranqüilidade que, a princípio, não o pertencia de todo. Foi moldada para exatamente não revelar as chagas que o abatiam por dentro. Não queria ser visto com olhos da condescendência, vulgo pena para muitos. Queria mesmo era ser feliz, mesmo a custo de um esforço incalculável em tentar dirimir o trânsito de sentimentos e frustrações que por dentro dele circulava. Mas coisa ou outra não dava para escapar do controle. Eram as nuances que poucos se atinham a perceber: um olhar esquivo, a voz encolhida, o desenho da ruga. E assim, paramentado de sensações construídas, ele seguiu a vida inventando sua personalidade. Até se dar conta de que, para aliviar as feridas com o ungüento necessário, o menino tinha que se despir. Mesmo que o espelho não hesitasse em refletir sua dor maior: a de ver quem realmente é. Fazia tempo que ele não se atentava para isso. Estava entorpecido pela própria invenção de ser o que não nasceu para.



24 setembro, 2008

Ponte para o céu



Havia cansado de esperar. A menina brincava dentro da casa, ansiosa pela promessa de novas cores um dia a ser cumprida. Seu branco já estava desbotando nas paredes, embora a experiência de vida já não lhe dera muita variação de tons nos últimos anos. Para ela, tudo seguira num mesmo nuance até o dia em que lhe juraram apresentar o arco-íris. Mais do que a porta para as novas cores do mundo, esta seria a ponte que levaria a menina àquele céu tão cantado em suas orações de joelhos por uma vida fora da casa. Eram dias e dias a fio, apoiada no parapeito da janela esperando o enlace entre a chuva e o sol. Queria testemunhar o espetáculo nas nuvens para, finalmente, a guria poder se arrumar com sua mais bela roupa e receber aquela visita. Mas nada aconteceu. O tempo seguia em seu ciclo numa estabilidade rara de encontrar por aí. E o arco-íris tão esperado só aparecia quando ela cismava em fitar o sol para, de uma vertigem ilusória, lhe surgir cores novas. Mas, desta vez, não havia mais ponte. Tudo estava solto no ar.



Molhado



Em alguns pontos eu contrario minha mãe. Um deles é quando saio do banho, sempre molhado. Não tenho o hábito de me enxugar. Ela não compreende e sobrepõe minha mania com a dela: espalhar três ou quatro toalhas pelo banheiro. Esforço em vão. Gosto da companhia da água nos braços e nas pernas encharcadas, ainda que em proporção ínfima perto da excitação de estar frente ao mar. Acho que gosto mesmo é de ver o corpo evaporar pouco a pouco, alheio ao meu controle. Mesmo correndo risco de um escorregão, sinto a vida mais própria com o movimento das águas em mim. Isso vale, sobretudo, para essas semanas de apatia externa e inquietação aqui dentro. Com a água, sinto movimento na pele. Efêmero, que seja. Porém diário. 

Arreio



Filho de Deus, pra que galopar tão depressa assim? Você não tem experiência na coisa e já sai pegando o pangaré assim, às escondidas? Não vê que o bicho, por mais ensinado que seja, tem vida própria e não é toda hora que segue o comando do arreio que lhe prendem na cara? Pois é, você vai se metendo à valente por aí e não conta que pode cair do cavalo, não é? Mas é bom se precaver, meu caro. O chão é duro para aqueles que saltam alto demais sem saber domar as próprias rédeas. Por isso, nada de estripulia mais: ande devagar porque a vida da gente, de vez em quando, pede calma na caminhada. Se por um acaso você cair novamente, lembre-se de que o tombo será menor e a dor, passageira, se o ritmo for mais controlado. Mas do jeito que você estava indo, Jesus, resguardo de cama seria pouco para tamanho abuso. Quando melhorar, vá ao campo e converse um pouco com seu cavalo. De preferência, de manhãzinha. Quem sabe assim você aprende a lidar melhor com ele quando quiser se aventurar de novo por aí nessa vida.



20 setembro, 2008

Em construção



Minha personalidade não é inventada. Não é fruto da mente ou ser empírico dentro de mim. Eu a construo dia a dia, entremeando dúvidas e certezas de que a felicidade plena é um sonho possível. Minha personalidade é quase palpável. Por mim, digna de qualidade totêmica. E se não fossem os malditos erros que me cingem o peito, não haveria a necessidade de me erigir constantemente diante das intempéries da vida. Eis o valor do meu suor diário e, hoje, uma das minhas razões de aqui escrever.


[Pensando em Chico e em Clarice]


De / Para




Prezada Clarice,

Nunca tive sentimento de vingança com a tristeza inoculada no peito. Deduzo suas origens, mas ainda não aponto com veemência os autores da obra. A não ser quando me encontro com o espelho. Imagem nítida de um único reflexo retorcido pela mais ordinária dúvida do ser humano: “Por quê?”.

A bem da verdade, eu nunca me senti, de fato, vestido com as afirmativas do mundo. A certeza da vida me desnuda. Prefiro me calçar com os questionamentos que costuram minha história. Assim, em silêncio, vou me impondo perante os inimigos, perante os incrédulos da minha vitória e, quem sabe, até perante outras coisas do mundo que ainda quero tanto aprender.

Estou num momento de poucas palavras, cara amiga. Mas espero de coração que aceite esse meu breve desabafo como um regalo daquele que tenta, assim como fez a senhora, compreender um pouco dessa nossa vida.

Com respeito,
Daniel

17 setembro, 2008

Do prefácio à página dois



Dizem que eu sou de pouco falar, mas isso não é lá bem uma verdade: eu sou mesmo é tagarela, por demais até. A diferença é que eu me desembesto de verdade quando estou sozinho.  Melhor ainda se estiver andando por aí. Falo sozinho e nem finjo usar o celular no ouvido. Nem para concatenar dá tempo. É uma resposta automática às tempestades que se formam aqui dentro de mim. Preciso chover, de preferência ao ar livre e sem local exato. Caso contrário, fica pesado demais para suportar. Não tenho tempo para prever a calmaria, muito menos hora para trovejar. É assim que aprendi a lidar na vida-a-vida, com diria Clarice: com relativa tranqüilidade até a página dois – que confesso: raramente eu viro. Só mesmo quando mexem comigo. Do contrário, deixo o mundo ler e reler meu prefácio de poucas palavras, muito silêncio, mas de muito vento aqui dentro.

 

07 setembro, 2008

A batalha de um menino



Se eu parar pra calcular o tanto de anos que já se passaram desde aquela batalha, minha mãe do céu, vou é me perder nas contas. Foi intenso demais aquilo tudo, meu Deus. Tudo acontecia dentro desse corpo aqui já arqueado pelo ir-e-vir das estações do tempo. Era o menino duelando com a couraça velha que lhe impuseram no lombo, acredita? Sabe esses pintinhos doidos para ver a luz do sol? Pois então, esse menino que morava dentro de mim era inquieto que só. E de tanto que bicou a casca, ele conseguiu a proeza de furar o ovo que lhe protegia do mundo. Como é que se diz aí na boca miúda do povo? – “Esse nasceu de seis meses”. Pois ele nem trinta dias completou. Tratou de escapulir daquele arcabouço gasto e viu logo de cara umas cores rajadas que chegaram a lhe ofuscar os olhos. Também pudera! O danado resolveu escancarar logo a janela de sua própria alma, ansiosa em admirar o mundo novo que lhe prometeram. Sim, ele nasceu certo de uma promessa que lhe fora feira nos tempos mais remotos: dar luz, força e beleza a quem se sentia cansado dessa vida severina. O menino não hesitou em vestir depressa suas cores prediletas: o azul estampado como bandeira dos olhos, e o ouro que fazia questão de ostentar no peito aos inimigos que acusavam o dono daquele corpo que não ter brilho algum nessa terra. Assim, ele conseguiu soprar ânimo numa risada já cansada de achar graça nas coisas do mundo. E desse sopro que lhe escapava os dentes, ele brotou sem querer no quintal da velha casa um pezinho de regozijo. Era pra celebrar, à sombra da árvore, sob a luz do tempo, a jovialidade a ele devolvida e a alegria de novamente poder viver. Agora em paz.

 

[Texto dedicado aos amigos mais próximos e, sobretudo, à minha mãe, que hoje faz aniversário. Nosso amor prevaleceu. A alegria foi resgatada. O resto está aí, emaranhado nas palavras deste texto. A música de inspiração: “Afoxé para Logun”, na voz de Clara Nunes]


05 setembro, 2008

Senhora dentro de mim



Dentro de mim moram muitos. Inquilinos, vitalícios, diferentes Danieis que buscam a harmonia nas várias possibilidades de ser eu. Uma delas, no entanto, é residente fixa: uma distinta senhora que fixou moradia bem atrás dos meus olhos. Ela completa o giro da visão, sem ao menos me enviar uma imagem sequer do que é por ela visto. Na verdade, eu nem deveria estar revelando ao público o endereço dela – como toda mulher precavida, a moça prefere valer por duas mantendo o sigilo e a discrição. Segue fazendo sentinela em silêncio sem distinguir o dia e a noite. Por quê? Ela simplesmente controla o tempo que se manifesta em mim. Se eu moro depois das tempestades, ela certamente está acima de qualquer nuvem. Em tempos imemoriais, sei que esta senhora brigou muito para hoje brilhar mais forte no firmamento montado sobre mim. Ela é meu altar, meu panteão de única devoção. Tenho o prazer de apresentá-los: eis a minha desconfiança. E também a minha força.


*Título extraído da música “Iansã”, de Caetano Veloso, na voz de Bethania. 


04 setembro, 2008

Bolor [ou "Contra-sonhos"]



Tinha pelo travesseiro um apreço especial. Era seu confidente mais próximo, por vezes seu amante que dormia no lado direito da solitária cama. Mas naquele dia havia um cheiro diferente, pode-se dizer enjoativo. Não dava mais para dormir com a mesma conformidade de antes. Era cheiro de mofo. Seus sonhos se repetiam, como um disco que está cansado de tocar sempre a mesma faixa, sempre no mesmo tom. A vida estava no ritmo moroso de sempre. E o sono já não achava mais graça em abrir a porta para os sonhos benfazejos da alma. A noite embolorou. Precisava pegar uma nesga de sol qualquer para ver se conseguia um pouco de ar. Por isso, escureceu tanto naquele dia.



Caleidoscópios [ou "Dos Sonhos - Parte 2"]




Não tinha melhor hora para ele do que a hora de dormir. Era o momento em que o menino mais gostava do breu de seu quarto. Rapidamente se enfronhava entre os travesseiros, tapando os pés até a cabeça. Mas não pensem vocês que era uma reação sintomática ao medo comum a toda criança quando a noite chega. Os leões que moravam embaixo da janela? Ele não temia. Era um rapaz valente.  

Fechar os olhos, para o menino, simbolizava um momento mágico. Era mais do que hora de começar seu espetáculo de cada dia. A alma, mesmo de frente à sua cortina fechada para o mundo, se engrandecia a cada noite quando assistia aos acontecidos no palco montado sobre a cama. Diante dos olhos fechados do menino, caleidoscópios surgiam à revelia do grão mais fértil da sua imaginação.  

Formas e desenhos diferentes, tamanhos variados, todos numa escala cinza de cor. O céu, pela primeira vez, tinha nuvens próprias, assinadas pelo guri, que cerrava forte a visão para ver mais. Queria estrelas e borboletas voando juntas. Queria os feixes do arco-íris sem esperar o fim da chuva. 

Quem brilhava ali, como um sol em plena meia-noite, era a grafite que seus olhos insistiam em usar para os desenhos encantados. Toda noite era essa euforia. Festa. Hora de sonhar. Com os olhos, mesmo que fechados, bem abertos para ver passar o filme delirante de uma infância.

03 setembro, 2008

Cajado



Nos primeiros meses da nossa história, não fiz muita distinção do que era céu ou terra entre nós dois. Queria manter os pés no chão, mas este era um esforço inglório. A mente, voz ativa naquele momento, viajava mais alto que de costume. Estava encantada com a possibilidade de, enfim, encontrar a felicidade tão propalada pelos livros lidos na adolescência.

Era tudo novidade. E instável também, já que nunca se sabia ao certo onde estava pisando. Mas a sensação de dúvida sempre me apeteceu. Lembro meu avô me ensinando: “Entre o sim e não, prefira a dúvida”. Muito me alertavam por aí: “É um tiro no escuro”, porém preferia acreditar que você, na verdade, vendava meus olhos com as mãos em direção ao escuro fugaz de uma festa-surpresa.

Surpreendentes, no entanto, foram os acontecimentos entre nós que distanciaram pouco a pouco as estrelas da terra batida do dia-a-dia. O tempo, apesar de relativamente curto, foi senhor de si e fez questão de inscrever sua tatuagem em ambas as costas. Eram marcas de rugas, desenhadas para mostrar nosso envelhecimento diante da ausência de perspectivas. Céu e terra se distanciaram cada vez mais, desta vez a olho nu.

Hoje, arqueado, ainda caminho. Tenho a ajuda de um cajado, que parece ser dotado dessas encantarias assombrosas, porem de muita verdade.  Digo isso porque, se estiver andando mesmo sobre essas nuvens longínquas, é o cajado que força a terra ao seu lugar de direito. Se do contrário, ele faz com que o céu, pelo menos, não caia com tanto peso sobre essa minha cabeça confusa.

02 setembro, 2008

Abutre



Conta uma lenda iorubá que o abutre ficou careca de tanto praticar a bondade em sua vida de bater asas em nuvens alheias. Diante da escassez de penugem, o bichano ficou mal que só, capaz de deixar o espírito altruísta de lado para amedrontar, com o bico arqueado, aqueles que se espantavam com sua inesperada amargura.

Curiosamente, há tempos eu tenho me notado mais calvo que de costume. Engraçado, porque os fios não se esvaem mais nas águas. Desta vez, é o céu que ameaça desabar a cabeça. Vejam bem, senhores: desabar “a”, e não “sobre”, como costuma acontecer nos mais verdadeiros clichês. Algo o corpo humano tem que botar para fora diante do silêncio que ainda me acomete nos momentos de maior perplexidade.

Eu mesmo já não sinto mais febre, já não sei mais gritar, tampouco forçar as lágrimas. São apenas os fios que caem dia a dia sem deixar qualquer rastro no chão. Esta é uma resposta sintomática à ausência de alguns retornos do mundo. A única imagem a mim refletida no espelho é a de um abutre cansado e envelhecido, branco pela palidez provocada por uma calma incoerente, um alarido abafado, por uma ironia desapegada a essa vida louca.

Mas, acreditem, ainda não bati em revoada definitiva. No fundo, eu aguardo com certa esperança esse céu cinzento passar de todo, não importa quantos fios de cabelo restarem na cabeça. Essa cuca ainda vai batucar muito, tenho certeza. Seja para ficar maluca de vez ou para ver se faz de mim, como canta Bethania, uma pessoa assim vitoriosa.