31 janeiro, 2008

Carta de amor

Foto da :: velha casa ::
Sony Ericsson K550i


Quando rascunho num bloquinho qualquer minha rotineira confusão de pensamentos, lembro sempre os versos de Fernando Pessoa: “Todas as cartas de amor são ridículas”. Pelo visto, devem ser mesmo. Cada palavra, cada verbo, cada ponto meu colocado no papel é pensado com precisão, como um ourives burilando a jóia mais rara com a devida precisão cirúrgica. Tudo para refratar esse sentimento do meu para seu peito, se possível na mesma intensidade do bate-volta, mesmo com o receio confesso de que este retorno se perca no meio do vácuo que muitos aí fora insistem em chamar de insensibilidade.

A escolha das pedrarias que enfeitam esse papiro do amor vai ao encontro do seu apreço, pois agradar o mundo sempre foi a sina daqueles que viram na infância o canto da parede como o lugar oficial a ser ocupado neste mundo. Agradar com uma carta, desenhando a letra nas linhas imaginarias de um caderno de caligrafia, regozija a alma, acalenta o espírito, mas não o coração. Esse fica à sua espera, ao seu retorno, ao seu cuidado em preservar aquele escritinho simples como prova de que é possível o sentimento ganhar ainda mais ares de nobreza por meio de algumas poucas linhas.

Mais uma vez, concordemos com Fernando Pessoa. Todas as cartas de amor são mesmo ridículas. E quem as escreve também. Esse palavrório todo apresentado aqui e nos outros papéis guardados no meu caderno poderia ser muito bem enxugado em três parcos tempos de oratória: “Eu te amo”. Como já ensinava Drummond, escrever bem é cortar palavras.


30 janeiro, 2008

Guilhotina


Há certas situações que vêm ao seu encontro sem qualquer sobreaviso. Não procurei saber por onde você andava, com quem falava na minha ausência ou o que buscava no mundo de lá – esse mesmo mundo que não fazia parte da interseção que concordamos rabiscar quando decidimos andar de mãos dadas sobre os tijolos amarelos. Mas, sem querer, vi o que não queria ver, descobri o que não queria saber. Ou melhor: o que jamais poderia supor acontecer. E o mais grave: com você ao lado, sem saber o que ocorria comigo.

A primeira imagem que a mente desenha é a da minha própria guilhotina, que acompanha o presente de frustrações que, volta e meia, decide tirar sua grinalda para dizer “sim” sob o altar do meu passado. Simplesmente perdi a cabeça pensando em inúmeros porquês que me tomam sempre num momento de angústia como esse.

O corpo eu deixei lá mesmo, naquele seu espaço, compactuando com seu sorriso, seus dizeres e suas flores a mim ofertadas. Por mais que eu tente procurar a contramão disso tudo, a sentença ficou, no fim, a meu próprio cargo e responsabilidade, já que fui apresentado à linha paralela que corre fora dos nossos trilhos, à revelia de nossos quereres.



29 janeiro, 2008

Cinco minutos



Hoje eu peço a você pouca coisa
Apenas cinco minutos para mim
É o meu tempo para concatenar os sentimentos
Preciso entender o que salta aos olhos


[O que pulula
O que reverbera
O que sangra
O que dá raiva]

Hoje eu peço a você cinco minutos
É o tempo que eu tenho para pensar
Não sei dar voz ao coração
Assim, de supetão


[Mas o que pulula?
O que reverbera?
O que sangra?
O que dá raiva?]


“Tempo, tempo, tempo, tempo”
Por favor, respeite esses meus cinco minutos
É o tempo que ainda tenho para te amar
Depois a gente vê o que faz



Que pena


Para muitos, a pena é o pior sentimento que se pode ter por uma pessoa. Discordo. Hoje se apresentou a mim um sentir ainda mais inquietante: a repulsa. Ainda faltam as palavras exatas para explicar de que forma ela, de repente, se manifestou no mundo. Mas tive a clara percepção de que repelir alguém, sobretudo quando um dia lhe fora dedicada sua morada mais nobre, é ainda mais angustiante do que simplesmente dizer “Que pena”.

Como já ensinavam as lições freudianas da faculdade, o oposto do amor não é o ódio, e sim a indiferença. E não dá para ter repulsa sobre você sem, ao menos, sair de cena do palco do coração, fechar a velha cortina empoeirada e apagar nesta noite o letreiro do único filme ainda em cartaz: “Eu te amo”. Que pena.


26 janeiro, 2008

Roda gigante


parque
diversão
amor
.
montanha
salada russa
curva oscila
.
roda gira
gigante medo
.
coração palhaço
queda ainda
livre por você



"Gostava e não gostava. Sei, sei que, no meu, eu gostava, permanecente. Mas a natureza da gente é muito segundas-e-sábados. Tem dia e tem noite, versáveis, em amizade de amor"
[Guimarães Rosa]




25 janeiro, 2008

Medo


Tanto tempo de ausência de palavras neste espaço não significa a ausência de impressões diferentes a cada dia em que nada fora escrito por este quem vos fala. Mas hoje o temor é latente. Trata-se de um medo do desconhecido, do novo, daquilo que surge de forma inesperada na sua frente e deixa qualquer um sem saber para onde correr diante de um troteiro de sensações.

O medo está cara-a-cara. Perigo? Não sei se chega a representá-lo. Mas sinto que é um pulsar feroz aqui dentro, capaz de mobilizar involuntariamente os músculos da face, mesmo num instante de mais aparente calma e conforto.

Esse medo se prolonga a cada olhar perdido no céu e ganha pernas próprias, como as de uma centopéia. Como conseguir dormir à noite? Como lidar com a memória daquilo que eu não quero mais pensar? Vai dar para apagar a luz e deixar o silêncio falar por si? O ressoar do vento seria capaz de abafar as vozes que me tomam a cada madrugada trêmula?

São muitas perguntas que só fazem crescer a agonia deste que, definitivamente, coloca o rabo entre as pernas, como um vira-lata amedrontado, quando se depara com a surpresa, seja ela desagradável ou não. No caso de hoje, não foi agradável aos olhos, tampouco ao coração, que por ora acalenta uma imagem quase sacra do amor. Um amor benzido pelas parcas lágrimas de quem, um dia emocionado, fincou no próprio peito a bandeira da reestréia, do renovo, da re-vida que me foi oferecida pelo acaso.

Mesmo com todo medo, quase transfigurado num pânico, numa angústia ritmada com as batidas do peito, sigo a esperar por seu colo. É o meu único ungüento hoje. Preciso quebrar de vez a imagem que hoje me fora apresentada abruptamente por você. E, por favor: não se esqueça de ceifar de vez as raízes dessa má impressão por mim tomada. Quero continuar a regar suas flores plantadas na terra quebradiça que, por ora, atende pelo nome de meu coração.



21 janeiro, 2008

Fissura


Sabe, senhores, quando o amor desencanta? Pois esta é a sensação que se apresentou a mim nesta noite. É bem verdade que ele já vinha a sinalizar sua chegada semanas atrás. Hoje, no entanto, ele resolveu dar as caras e fazer uso de toda cerimônia que lhe compete para estender seu tapete vermelho sobre um resquício qualquer de um sentimento sôfrego, há tempos tentando desafogar-se do seu próprio mar.

Já na entrada, estendo a mão ao desencanto, que trajava vestes nobres, como quem fazia sua primeira visita, ou então uma visita depois de muitos anos de ausência. O cumprimento foi uma resposta imediata à educação que me foi dada, tanto pelas tias da creche como pela mãe, atenta sempre quando lhe era possível.

A porta eu abri porque queria, primeiramente, conhecer tete-a-tete o tal desencanto e também saber quais eram, de fato, as suas reais intenções naquele momento. As palavras, com todos confortavelmente posicionados na sala, foram muito breves: “O encanto do amor é como a velha casa. Um dia, ela há de expor suas próprias fissuras”.

Não me restou outra alternativa a não ser seguir com a xícara de café, respirando profundamente sob a goteira de lágrimas que caia sobre o teto. E, claro, fitar o desencanto com certa deferência, por ter me apontado a fissura antes de uma demolição involuntária.



“Sou a alma
Sou a cara
Sou o retrato
Que retrata
O que na alma
Eu sou de fato”
[Arranco do Engenho de Dentro, 2006]

19 janeiro, 2008

Incenso


Estou longe de mim, mas à frente de um pensamento turvo que ronda as matas das minhas madrugadas, sempre ao deitar-me à cama. “Quem é você e o que faz por aqui?”, canta, mais uma vez, Bethânia. “Eu guardo a luz das estrelas”, prossegue a mestra, numa voz trêmula e combalida.

Do céu, uma fagulha de luz me alumia pela fresta da janela. O aviso é curto: é chegada a hora de acender um incenso, mas não à noite. “Faça isso de dia, para ver o desenho da fumaça que, aos poucos, vai ganhando espaço no vácuo do céu”, recomendam as vozes que pedem licença para ocupar a consciência por alguns instantes.

Na loja, já no dia seguinte, está toda sorte de mirras, alfazemas, jarros e flores. Quero apenas um incenso, para seguir as recomendações anônimas que vieram do alto céu. O vendedor aponta para o mais inodoro, mas que lança no ar a combustão sagrada da purificação daqueles que ainda se atormentam com o passado plúmbeo da adolescência.

Chego ao terraço, depois de esperar passar a pouca chuva que empapuçou o piso branco. Ali, sozinho, faço uma pequena festa em louvor às nuvens do céu. Sou apenas eu e alguns passarinhos, sem buzinas, sem trânsito, sem batucada ou qualquer outra espécie de gritaria que têm me acompanhado nesses últimos dias.

Eis que foi feito o meu altar de devoção e gratidão, celebrado naquela hora pela representação do vento, correndo de ponta a ponta com um leve assobio. O verde, de onde vem a seiva da vida, eu colho do imaginário, povoado por um instante pela esperança de que a velha casa, um dia, acenda as luzes do salão para a festa de um reencontro: a de seu morador com ele próprio.

18 janeiro, 2008

Idade


A idade avança
A casa definha
A rachadura sobressai
E o medo cresce

Quanto tempo isso vai durar?
Quanto tempo eu vou suportar?
Quanto tempo dá para fugir?

A idade fala
O coração acalma
A vida se conforma
O olhar valida

Para que se manter jovem?
Para que correr sempre assim?
Por que ainda não maturou?

A idade acaba
Os anos evoluem
As vidas passam
E o amor continua à sua espera


Rio e mar


Hoje, ainda com sono, as palavras pedem para serem expostas no papel. Escritas talvez não a mão, pois não pedem tanto capricho assim. Hoje as palavras estão um tanto quanto resignadas, contidas, sem saber ao certo que rumo tomar, sem saber ao certo se olham para a direita ou para a esquerda antes de atravessarem a rua que divide a minha placidez da agitação peculiar de cada dia.

Esta é uma sensação perene: a de querer falar algo mesmo sem a sabedoria necessária de escolher a palavra ideal para definições, denotações ou explicações pertinentes. É algo que pulula, que reverbera, que incomoda, que grita com a mão na boca. Algo que me faz fitar os olhos nas nuvens e lembrar como era bom, antigamente, ver que no céu um sorvete de nuvens poderia se dissipar num piscar de olhos.

Vivo tenso ultimamente, atravessando a tudo e a todos com uma estupidez britânica: a voz serena, o olhar sem muito tique-nervoso, unhas intactas e pernas imóveis. Isso na frente de qualquer mortal, porque sozinho, como agora quando escrevo, os dedos falam por si, e a mente é uma profusão de pensamentos que me impede de separar o joio do trigo, o feijão bom e o grão estragado.

Um dia, essas coisas hão de sair da garganta. Torço muito por isso. Mas, enquanto as palavras ainda me têm como morada, eu as coloco na porta da velha casa. Mesmo assim, lamento por não evoluir muito naquilo que me proponho a compreender: um bocado desse rio que corta o meu mais profundo mar, como lindamente canta Bethânia.

Só me resta abrir o convés e convidar os senhores a navegar comigo. Tenham certeza de que, na calmaria ou na tormenta, serão todos bem recebidos.



“Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos”
[Cecília Meirelles]

13 janeiro, 2008

Realeza


[Escutando "Lágrimas sofridas", dos Los Hermanos]


Graças a sua conduta
Pus-me no lugar que me é de direito
Nem sempre merecemos o trono da nobreza
Principalmente quando se quer ser mais real que o rei
Quem carrega a coroa também perde a majestade

...


O orgulho cintila
O amor se exaspera
A dúvida cresce
Certa raiva reverbera
E a preocupação vem à tona:
Como não transparecer isso ao mundo?

...


Altivez
Soberba
Nobreza
Incerteza


Realeza
Beleza
Sua Alteza
Vossa fineza
Minha tristeza



11 janeiro, 2008

Sol da meia-noite


O que fazer com o tanto de voz que ronda a noite da alma? As palavras não tomam forma, não incorporam sentidos nem traduzem meus sentimentos, mas vibram internamente, num trânsito confuso, daqueles em que apenas são vistos os riscos coloridos do vai-e-vem numa avenida principal de cidade grande.

Quem observa tudo isso é o menino que brinca no seu playground até o grito da mãe, chamando para o banho derradeiro do dia. No pátio, entre a gangorra e o escorrega, estão as lembranças que a infância lhe ofereceu e deixou, numa centelha de legado, a sensação da felicidade plena, sem amarras ou cenas preparadas para um prosseguir cotidiano, como se vê nos andares de seu condomínio.

Quando brinca de pique-esconde e é o menino quem vai procurar pelos amigos que tanto sonhou em ter (mesmo com um ranço sociopata de lidar com as pessoas), ele só não gosta mesmo de contar o seu “um a dez” fitando exatamente os cantos do playground. Ele não consegue ficar por muito tempo, pois lá encontram-se alguns clarões de sua memória, que ofuscam a vista da criança e a remetem a dores e dissabores capazes de arder seus olhos claros cor do céu.

E é bom mesmo que o menino siga as recomendações médicas e preserve sua vista pueril. Pois no azul que emana de sua retina está o mesmo céu sobre o qual a criança pensa em, um dia, estender a bandeira da felicidade, na sua forma mais bela.

Quem sabe, só depois do manto estendido é que ele consiga visualizar de fato o sol da meia-noite que paira sobre seus sonhos a cada madrugada de vozes intermitentes.



Preta velha imaginou uma estória e vai contar
Preta velha já falou que nós vamos viajar
Galopando em cavalos alados
Chegamos ao país das maravilhas
Iluminado pelo sol da meia-noite
Bela fantasia infantil
Recebidos por soldadinhos de chumbo
Entramos na floresta encantada
Brincamos com cata-ventos, pipas e piões
No enlace da barata e dom ratão

Jogar xadrez, pique-bandeira
Pular carniça tudo é brincadeira

Um gênio cria fogos de artifício
Os animais falam e as flores cantam
Neste lindo encanto eis o resplendor
E a magia das Mil e Uma Noites
Chapeuzinho, Lobo, Cinderela a Gata
Branca de neve e os Sete Anões
A chita correndo com o Saci Pererê
E todos falando a língua do P

P B P ru P xa
Levantando a poeira
Até a bruxa vem brincar

Olha a ciranda, vamos todos cirandar
E na terra dos brinquedos
Todo mundo recordar
Índio, malandro, baianinha, oriental
Outra vez eu sou criança e Beija-Flor no carnaval

[“O Sol da Meia-Noite, uma Viagem ao País das Maravilhas”, Beija-Flor de Nilópolis, 1980]


07 janeiro, 2008

Maçã



A maçã à mesa deixada
É para ganhar no final
A estrelinha reluzente no papel

Por um dever bem cumprido
Por uma tarefa bem feita
Por uma prova de acertos
Por uma conduta sem rasuras
Por um exemplo a seguir


A vida agora dedicada
É para ver no final
A necessidade do freio

Porque não dá mais para mim
Porque é cansativo seguir
Porque força a lágrima a cair
Porque eu te amo mesmo assim


A você, a minha maçã mais vistosa
A você, o meu choro
A você, a minha mordida
E um tanto dessa vida minha



"A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem a importância
das pessoas que passam por suas vidas."
[Clarice Lispector]

05 janeiro, 2008

Saudade


Perguntaram-me certa vez por que eu temia tanto a idade que vai chegando. Como de hábito, eu respondo apoiado nas palavras dos sábios e novamente recorro a Guimarães Rosa: “Toda saudade é uma espécie de velhice”.


A magnitude desse tema está além da minha memória e compreensão. O temor, creio eu, estará na saudade do que assisti ao longo dos anos e também do que não consegui viver nesse tempo todo.


Hoje, ainda com barba preta no rosto e parcos fios de cabelo branco, já me sinto por muitas vezes envelhecido, seja pelas culpas, falhas, faltas ou frustrações garimpadas numa adolescência inquietantemente pacata. Mas, “de repente, não mais que de repente”, chega o amor e dá um sopro de vida nova ao coração asilado pelo silêncio.


São oferecidas flores, mundos e fundos para que se esboce um sorriso espontâneo qualquer. No meio do caminho, abraços e afagos para acalanto. Pede-se ainda para cortar o cabelo porque quer rejuvenescer o rosto, que um dia inventou suas próprias rugas para apresentar uma maturidade forçada (ou talvez forjada, não consegui ao certo identificar).


***


Ano novo, vida nova. Os fogos, em exibição fulgurante no céu, comemoram a chegada da visita à velha casa. Na praia, as estrelas dizem que o amor renova a alma.


Bobagem. Mal sabem que ele estampa o pavilhão da saudade no peito, que anuncia em alto e bom som: sai de cena a paz interior para dar lugar a uma inquietação ainda a mim indecifrável.


— Por que não estamos juntos agora?
— Seria tão bom compartilhar a paisagem.
— Ali um bom lugar para sentarmos juntos.


São frases que ainda reverberaram em eco nesta primeira semana de 2008.


"Se eu te troquei não foi por maldade
Amor, veja bem
Arranjei alguém
Chamado saudade"

["Veja bem, meu bem", na voz de Maria Rita]