30 maio, 2008

Obra de arte


O oleiro visita todos os dias o quarto onde guarda a estatuaria feita por suas próprias mãos ao longo dos anos. De formas e tamanhos variados, de barro moldado ou pedra cinzelada, as obras por ele expostas representam, uma a uma, parte de um passado vivido e ainda sensivelmente reverberado naquele homem. Dores, alegrias, medos, reminiscências: estão ali alguns fantasmas e outros etéreos de sua vida, erigidos ao sabor ou dissabores das experiências que teve. Ainda que incólumes enquanto esculturas, elas indicam no conjunto o movimento de quem caminhou – e ainda ruma – pelos trilhos de uma maturidade há muito perseguida. Cada talha feita ou destroçada com o tempo, cada sobra de material caída ao chão evidencia o esforço do oleiro em alçar seu espírito à própria renascença. A estatuaria é seu altar votivo, de um passado consagrado que impõe ao oleiro, diariamente, um novo olhar sobre o presente. Esta é sua forma de fazer arte.



“Eis, portanto, um oleiro que amassa laboriosamente a terra mole, e forma diversos objetos para nosso uso, mas da mesma argila faz vasos destinados a fins nobres e outros, indiferentemente, para usos opostos. Para qual destes usos cada vaso será aplicado? O oleiro será o juiz”.
[Da Bíblia]

28 maio, 2008

Ladrilhos



Ela conduz seu humor como numa parábola desenhada de olhos fechados, com altos e baixos imprevisíveis, confusos, inconstantes e por muitas vezes cansativos para o invólucro de sua personalidade hermeticamente fechada ao mundo. À platéia, a menina estampa uma pretensa placidez, como se nada lhe estivesse ocorrendo dentro dos olhos. Mas ali atrás estava, sim, a arena do tráfego descompassado de seus pensamentos. E não há força maior que a impedisse de ser empurrada de sua própria montanha-russa, cujas curvas tomam formas daquelas interrogações infindas, que desconhecem a natureza da resposta.

O rosto, de testa um pouco franzida, é sintomático com sua dor de cabeça, perene por fora e pululante lá dentro dela. Os poucos que a conhecem até saberiam identificar de cara que algo estranho estava lhe acometendo, mas ainda sim era tortuoso o caminho daqueles que se aventuravam a investigar. Nem a menina sabia – ou queria – achar as luzes dos labirintos nos quais costumava se emaranhar de súbito, sem prévio aviso ou motivo aparente. Seus olhos, e somente eles, pareciam naquele momento cantar ao mundo o que Caetano já antevira: “Minha voz soa exatamente / De onde no corpo da alma de uma pessoa / Se produz a palavra eu”.

Para não ser por demais indelicada com as pessoas, a menina preferia nessas horas andar um pouco mais cabisbaixa do que de costume, observando no chão a seqüência coreografada de seus passos. Era o que detinha seu controle até então, e ela estava determinada a, pelo menos, conduzir-se ao seu próprio ritmo. E, na dança dessa sua solidão, era de hábito escolher com cuidado os caminhos em que rumava por aí.

Caminhar para ela era o mais importante. Quem sabe assim sua mente desaluviava um pouco aquela turbulência, dando-lhe uma certa trégua na vida. Mas, para a menina, pouco importava se a terra onde pisava era batida, asfaltada, com ou sem percalços, até se atentar para o que até então passava desapercebido: as encruzilhadas que se formavam a cada junção de azulejos que ladrilhavam o piso do seu palco. Estavam todos para ela reluzentes, aluminando as mais diferentes possibilidades de caminhos a tomar. O caminho, finalmente, se iluminava para a menina.

Segundo os mais místicos, este é um sinal de bom presságio, já que a encruzilhada dava a ela a oportunidade de seguir para a direção que melhor lhe apetecesse. A cada passo, uma nova cor surgia por entre os assoalhos, enchendo seus olhos com aquele caleidoscópio vertiginoso montado em seu próprio tabuleiro. Naquela hora, a menina perdeu, enfim, as rédeas de seu sorriso. A claridade lhe impôs mais leveza e, surpreendentemente, ajudou-a a apagar as luzes de sua confusão, que não teve outra saída a não ser chegar ao fim de mais um ato daquele espetáculo.





[Escutando “Drama”, de Caetano, na voz de Bethânia, sobretudo os seguintes versos: “Minha pessoa existe / Estou sempre alegre ou triste / Somente as emoções”]





27 maio, 2008

Inversão de sentidos




Sempre preferi a meia-luz ao breu total, mas você me apresentou um novo ponto de vista: desta vez, com o escuro dos olhos fechados. Enxergava você naquela noite pelo tato, pelo cheiro, pelo beijo.

É como uma inversão de sentidos. No silêncio do quarto, minha boca escuta seu “Te amo” mais tenro, num eco sussurrado aqui dentro letra a letra, que em mim ressoava lenta e repetidamente de cima a baixo, cabeça, tronco, membros e coração em consonância, no mesmo ritmo, dançando juntos a mesma trilha sonora.

Só que a música não pede apenas as mãos dadas: para o nosso pas-de-deux, eram corpos dados, doados e dedilhados por reações quase sintomáticas, que se preocupavam em desenhar naquele momento as mais diferentes vibrações, produzidas por pernas e braços ali trançados num único novelo, desta vez sem fios à solta.

Éramos dois em um, numa mistura de gosto, deleite, prazer, agrado e satisfação, que me faz hoje conversar com o mundo apenas por meio de um leve e involuntário suspiro a cada vez que lembro nós dois. E também um sorriso multifacetado que intriga a quem por mim passa neste dia seguinte, de você hoje desmembrado.

Eu sem você, nossos corpos sem interseção. Quer sentido mais invertido que esse?



[Escutando “A tua presença morena”, de Caetano]



23 maio, 2008

Em silêncio



Minhas verdades
Só o silêncio é capaz de dar
É quando eu me acolho deitado
Na noite do meu quarto
Em pensamentos iluminados
Pelo escuro dos olhos fechados
Numa vã tentativa de evitar
Um sofrer que por mim é antecipado

Eu te amo e me acelero
Eu te amo e me exijo sempre
Por isso, esse meu silêncio solene
Das vozes que vêm a me confundir
E eu reluto a confessar

Mas hoje vai ser diferente
Hoje eu sei que quero viver você
Com você e para você
Meu sempre é hoje
E você é pra sempre na minha vida

Não vou falar muito
Como de costume por aqui
Hoje eu preciso te ver
E apenas lhe dizer que
Além de te amar
Eu quero que você

Me vire do avesso
Me pegue ao contrário
Me veja além do espelho
Me desabotoe um a um

Só para perceber
Quantas palavras ainda estão ali
Dentro de mim
Prestes a germinar
Prontas para eclodir
São essas as palavras
Que eu tenho para te ofertar
São como as flores mais nobres

Juntos nós vamos deixar
As falas de cada um
Perdidas por aí
No meio de um caminho
No canto do quarto
Na porta da velha casa
Para que possamos
Finalmente
Nos perder

Juntos
Em silêncio
Em amor
Desta vez, sem dor





[Tentativa de poema confuso, feito hoje em silêncio, sem música, sem barulho de rua, sem telefone tocando. Inspirado num provérbio africano: “O silêncio marcou os caminhos. A fala os confundiu”. Só para testemunhar uma certa leveza que o pêndulo aí, do post anterior, brevemente visitou esta semana na velha casa.]




22 maio, 2008

Cais do porto


“Procurem por toda a parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.”
[Manuel Bandeira]



Talvez esteja sendo mesmo injusto com você. É que meu pêndulo tem se alternado entre a leveza da vida e o drama antecipado. Nesses dias, ele acabou pesando mais sobre certas preocupações, ainda mais com o peso que suporta seu eixo. Uma dor que só a mim pertence, reconheço, e que não me permite ter paciência em esperar o tambor do coração tocar todos os ritmos, dos mais efusivos aos macambúzios.

Por isso, as cobranças, as queixas e o tom seco da voz. “Cada coisa no seu tempo, cada qual no seu cavalo”, já dizia meu avô. Sei que, se dependesse de você, os fatos não tomariam os rumos de hoje e poderiam ser diferentes para nós dois, com os ventos soprando a favor de um contentamento mútuo. Mas sua postura silenciosa prefere nos levar para o cais de um porto: você junto à morada das suas águas; e eu a ver navios no píer, aguardando sua chegada.

Alguns navios partem, outros chegam, mas nenhum deles traz notícias suas. Embora respeite sua predileção pela coxia do teatro ao palco iluminado, eu me resigno a olhar o mar e suas linhas desenhadas, escrevendo nela mensagens para ver se o ar, o vento ou as estrelas são complacentes com minha saudade e, quem sabe, tenham a fineza de lhe dar meu sinal de vida.

Faço no horizonte do cais um diário testemunhal dos sentimentos que dedico a você, que nessa hora não se acanham em pendular entre a leveza e o drama, em qualquer movimento, em qualquer intermitência, em qualquer intensidade. Pelo menos, até que o sol da meia-noite, que tanto nos iluminou naqueles tempos de lembrança, faça seu crepúsculo derradeiro. Ou que a estrela da manhã, com o perdão de Bandeira, se apague sobre nós.

21 maio, 2008

Palavras cruzadas



O amor de hoje mora exatamente aí, no embaralho das palavras cruzadas na mente, ou numa marola de suspiros a cada tentativa inglória de tentar entender por que me sinto tão vulnerável diante da sua presença. Quer dizer, da sua ausência – de palavras, telefonemas, de contatos, de causos, contos e vivências compartilhadas.

Cada vez menos eu tenho você e cada vez mais meu coração se emaranha em sensações diversas que, por ora, escolhem se manifestar ao mundo com certa timidez para o público. O espetáculo acontece aqui dentro, ainda apresentado em monólogo, até que o nosso “Eu te amo” entre em cartaz, reestreando no painel luminoso na praça.

Por enquanto, observo sentado no banquinho do largo central o tempo que segue, os velhos que se renovam, os cães que se coçam, e as águas do chafariz que se repetem sobre o incólume da vida imobilizada.


[Moral da história: é preciso descruzar os braços. Ou, no meu caso, as palavras. Enquanto esse momento não atinge sua completude, para confortar ouço por aqui Chico Buarque e sua lição para os futuros amantes: “Não se afobe não / Que nada é pra já / O amor não tem pressa / Ele pode esperar / Em silêncio”]







20 maio, 2008

Três sensações, um coração



Gostaria muito de conseguir, enfim, expressar as confusões em que minha mente se envereda sem aviso prévio, carregando com ela toda sorte de medos, emoções e sensações difíceis de serem distinguidas. Não tenho mais você tão perto como antes, quando só nossos olhares nos bastavam para traduzir certos sentimentos inoculados pelo tempo, mas que afloraram em nós numa comunhão total de felicidade. Pretensioso eu, que acreditei numa nova velha casa a dois, só para que nós dois decifrássemos juntos qual é a forma mais plena que o amor escolhe se manifestar. E eram tantas...


[...]


Meu amor hoje veste uma máscara quando te visita, mas que esconde no disfarce a face de um medo antecipado. Hoje não tenho mais a cara limpa como antes. Como diz aquele ditado: “Por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento”. Involuntariamente, tento me precaver das possíveis dores que o novo me apresenta, sentado de lado num banquinho à espera de qualquer surpresa a surgir e pronto para a qualquer momento agir e tentar resolver as intempéries. Pena não alcançar justamente a sua, depois de tantos esforços em reverter tudo isso. E os meus olhos, mesmo camuflados, não encobrem essa frustração. É o fantasma cantando a ária de sua própria ópera, num palco de cortinas fechadas.


[...]


Eu prefiro seguir refém do seu silêncio dentro do carro, em movimento, ouvindo músicas no afã de decifrar essas trilhas por mim enraizadas num estado de ansiedade. Como aquela que você me apresentou no primeiro encontro. Eu confesso que só lembrava a voz, não o que se cantava no rádio. É que, naquele dia, guardei meus olhos só pra você. Eu era e ainda sou seu, mesmo que hoje sinta a dor por não poder tatuar isso com abraços e beijos a qualquer hora do dia. Tempos depois, parado num sinal, uma frase daquela música fala por toda essa minha confusão: “Deu meu coração de falar esperanto / Na esperança de ser compreendido”. Não precisei dizer muita coisa naquele momento. Também não quis ouvir mais nada, nem as buzinas me avisando de que era preciso prosseguir no meu caminho.




19 maio, 2008

Remetente



Moro depois das tempestades
Dentro do meu pequeno copo
De água misturada
Ao calor das emoções
E a frieza das reações



[Inspirado em Guimarães Rosa, que escreveu em “Grande Sertão: Veredas”: “Moro depois das tempestades”. Um dia de poucas palavras verbalizadas, mas muitas pululando aqui dentro. Às vezes, tenho sede da lucidez dos pensamentos e da calmaria da mente]



14 maio, 2008

Diagnóstico



Meu silêncio grita. Em voz baixa, em dó menor, como canta Chico. Só que desta vez calado, sem grandes discussões a respeito. Não tenho muito a dizer, embora o corpo fale por si, só para mim, em movimentos que regurgitam uma dor de natureza estranha, sem remetente, sem endereço.

A cabeça, essa pulsa com o tanto que pensa, embora eu tenha notado um cansaço inoculado há meses e que só agora veio a germinar. E meus olhos já não vertem mais nada. Eles se apresentam ao mundo pequenos e levemente intactos. Estou frio e seco, como previa – e temia.

Resta agora o coração, ainda nebuloso diante de tantas reações que se reverberam intermitentemente. Talvez esteja negligenciando esse diagnóstico, para ver de que forma o tempo nele age. Não dizem por aí que esse é o melhor remédio?


Do coração



[1]

Coração néon
Vitrine colorida
Amor iluminado
De pulso intermitente



[2]

Meu coração pulsa ferrugem
A luz néon que nele circulava
Perdeu seu gás
De tanto cintilar na noite
À espera de atenção


[3]

Meu sangue embrutece
Deixa as veias mais rijas
Para confundir força e pesar
Meu sangue faz deste peito
Um grão de pulso latente
Hoje pelo tempo envelhecido
Que mora num um corpo entorpecido
Por uma dor indecifrável
Da ordem ou natureza do amor




[Definitivamente, não sou poeta. Prefiro me definir como autor de palavras aleatórias, que se casam em frases curtas, na pretensão de escrever poemas. Esses aqui saíram meio que sem pensar e são traduzidos pelo carnaval, hoje uma das paixões que ainda batem aqui dentro com certo fervor – menos do que antes, confesso, mais por questões, digamos, trabalhistas do que da ordem do relacionamento ou afeto. Na foto, o carro da Mocidade Independente de Padre Miguel sobre o coração, num efeito quase surrealista que, para mim, é digno de aplausos. O desfile é de 1998, “De corpo e alma na Avenida”. Quem quiser conferir o efeito na Sapucaí, é só ver o vídeo a seguir]




13 maio, 2008

Fronteiras


Difícil demarcar as fronteiras dos nossos interesses – os que me tangem, os que dizem respeito a você e os que eu penso ser de comum acordo para ambos. Tão ou mais difícil para mim é fincar a bandeira da calmaria numa mente como a minha, invadida com relativa força por rancores, não-dizeres, medos e frustrações. É uma batalha que costumo travar comigo mesmo. Certas horas, não consigo convidar mesmo a outra parte.

Tentei nesse tempo unificar nossos quereres, negociando aqui e ali, mas sei que tudo isso requer abertura de mão. Não hesitei em ceder em certos pontos, mas hoje confesso que sinto o ônus por não ter regalos ou regalias que ainda sonho em ganhar de você. E ele reverbera aqui dentro, numa forma velada qualquer de dor.

Essas são coisas de um último romântico, como cantava minha adolescência. Quem fala isso ainda é o menino imberbe que se encara em frente ao espelho, vislumbrado com as vestes do amor e, ao mesmo tempo, burlando uma inquietação que cresce à proporção do avesso refletido na imagem.

Ainda sim, embalado no seu misto de tensão e êxtase, ele baila sozinho no quarto. Quem dança também os males espanta, poderia dizer o ditado, e o menino ensaia no quarto os próprios passos na certeza de que sua mais nova roupa não vai se rasgar com os movimentos, ora bruscos, ora calmos, ora coreografados. Afinal, estar a sós com o amor é um momento de felicidade sem tamanho para ele, que renuncia nessa hora qualquer mau presságio em nome de uma crença ainda ostentada no seu peito: a de que pode ser.

Pode ser que dê certo, que as coisas vão mudar, que tudo será esclarecido. Que o amor volte à tona, quem sabe agora com uma nova roupagem, para dançar não só no quarto, mas também no salão, nas ruas ou sob chuva fina que volta e meia insiste em cair neste outono.

De preferência, a dois. Tomara.




12 maio, 2008

Pedaço de mar



No céu, a expectativa virou noite. Mas ainda me lembro de nós dois admirando o crepúsculo quando nos conhecemos, benzidos pelo tom alaranjado que tingia e esquentava as faces. Em cima da pedra, sentados, só ouvíamos o barulho das pancadas do mar. E eu ainda as ouço, como um zumbido de uma concha atada aos meus ouvidos. Reminiscência das águas, lembrança ainda viva nossa, um pedacinho do mar guardado comigo.

11 maio, 2008

Mamãe e eu

Minha mãe sempre primou pelo silêncio. E pela fala do seu olhar, que vela as palavras quando, na minha opinião, precisam ser proferidas. E eu as espero tanto, mãe. Por isso, acho que sempre busco provocar nela risadas, contando casos e casos.

Invento até, confesso. Quem conta um conto aumenta um ponto, e para minha mãe sou capaz, acho, de pontuar exclamações em cima das reticências dela, só para guardar sua um pouquinho da sua gargalhada comigo.

Mas hoje foi diferente. No carro, nós cantamos juntos. Eram músicas do tempo dela, músicas que eu me apropriei com o tempo e algumas que ficaram no tempo. Ela, entre a rememoração das letras e a comedição da voz; eu, mais esfuziante ao volante, estimulando-a também com certa discrição para não constrangê-la diante do motorista empolgado.

Foi bonito. Entre marchinhas antigas dos salões, Ney e Nana, coroamos o Dia das Mães com a voz e o volume altos ao som de “Os sertões”, samba apresentado por uma escola chamada Em Cima da Hora em 1976. A letra, apesar de triste, é belíssima.

Interrompendo a continuidade dos versos, ela fala: “Eu sabia cantar esse samba todinho”. “Mãe, a senhora ainda sabe”, respondi. E seguimos de braços dados pelo corredor, cantando, até cada um chegar em seu quarto.

Bom ouvir a voz da minha mãe quebrar seu próprio silêncio com a música.



“Os sertões”
[Em Cima da Hora, 1976]

Marcados pela própria natureza
O Nordeste do meu Brasil
Oh! Solitário sertão
De sofrimento e solidão
A terra é seca
Mal se pode cultivar
Morrem as plantas e foge o ar
A vida é triste nesse lugar

Sertanejo é forte
Supera miséria sem fim
Sertanejo homem forte
Dizia o poeta assim

Foi no século passado
No interior da Bahia
Um homem revoltado com a sorte
Do mundo em que vivia
Ocultou-se no sertão
Espalhando a rebeldia
Se revoltando contra a lei
Que a sociedade oferecia

Os jagunços lutaram
Até o final
Defendendo Canudos
Naquela guerra fatal




09 maio, 2008

Da infância



O céu é azul
O sol é amarelo
Você é a princesa
Que faltava no meu castelo




Entrei no castelo
Pelo portão
E me deparei
Com você
Um dragão



[Poema bobinho, feito nos idos dos meus 6 anos para uma professora que não gostou muito da segunda estrofe. Associou a algo que lhe fosse pessoal na época. Nem era, na verdade, mas como o post anterior nos ensinou, cada um interpreta da maneira que quer e que lhe achar conveniente. Hoje, pegando carona na Leila Saads, “escondi” na velha casa a parte que revela certo medo de infância que, num exercício de interpretação, pode reverberar hoje sob outra máscara]



06 maio, 2008

Cabide



“Nós somos cabides dos nossos fantasmas”
[Lya Luft]


Toda vez que pensava em sair para ver o mundo, ela ficava em dúvida sobre qual roupa melhor lhe vestia. Eram tantos vestidos, de diferentes formas, cortes e cores, que a menina sempre se confundia. Mas ela bem que gostava dessa interrogação: entre o sim e não, era melhor ficar com a dúvida.

A sorte também a ajudava nessas horas. Seu método de escolha era bastante pueril, lembrava seus tempos de cabra-cega e salada mista no portão. Bastava-lhe tampar os olhos com a mão e escolher a dedo aquele que a ajudaria a se apresentar aos conterrâneos e contemporâneos numa noite de passeio pela cidade. Para ela, a brincadeira era por demais divertida. A menina ria sempre (e ligeiramente alto) com que o destino lhe respondera por meio de suas mãos.

Apenas um vestido ela mantinha intacto no cabide. Não era espalhafatoso, nem um trapo roto e abandonado no armário, muito menos datado para sua adolescência. Não tinha nada de mais com aquela roupa. A bem da verdade, era uma peça já desbotada pela ação do tempo. Inexplicavelmente, o único vestido velho que ela ainda reservava um lugar no armário em meio a tantos novos.

Por que, então, a menina mantinha aquela roupa ainda pendurada entre seus pertences? Isso ela nunca respondeu. Orientava a passadeira toda semana a não colocar nem um plástico sequer sobre o vestido. Ela gostava, mesmo sem qualquer confissão pública assumida, de sentir o cheiro do velho, do usado, da lembrança que habitava ali dentro do seu armário.

O vestido também nunca fora emprestado a ninguém. Pelos vestígios do tempo, parece ter sido usado por anos e anos. Mas engraçado: ninguém na redondeza ou na praça, nenhuma de suas amigas mais próximas lembram de tê-la visto usar o vestido. Só a menina sabia exatamente as vezes em que sentira sua tessitura sobreposta à pele.

As cores, manchas, tramas e laços daquele vestido lhe representavam o passado ainda vivo ali no armário. E ela mesma, por um tempo bastante considerável, serviu de cabide para servir de gancho e apoio a esse fantasma de sua vida. Hoje ela olha para o céu, agradece a quem lhe é de direito e diz, com certa firmeza:

— Deixe-me escolher quando devo tirar esse vestido do cabide e com ele desfilar aqui dentro do meu quarto. Só para mim. Deixe-me aqui dentro desfrutá-lo por alguns instantes. Só eu. E, por favor, não deixe me desfazer dele. Pelo menos, por agora. Pelo menos, por ora.


[...]




[Ainda sobre vestidos, tem um outro texto aqui da velha casa, publicado em dezembro. Passa lá depois. E na caixa de som, toca “Valsinha”, do Chico e de Vinicius, uma das minhas preferidas, que aqui se destaca, sobretudo, pelos seguintes versos: “E então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar / Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar”]




05 maio, 2008

Curta



Pensar aqui dentro da velha casa é abrir as portas para o conflito, mas (quase sempre) de uma forma lúdica. Porque o interessante para mim não é o desabafo de palavras expelidas sem qualquer filtro de interpretação, e sim a maneira como elas serão talhadas por quem está a todo momento reconstruindo seu próprio mundo, na busca de certos esclarecimentos.


[Em homenagem à minha máquina de escrever comprada numa feira livre no Centro do Rio, que resolveu não mais se alimentar de papel]

02 maio, 2008

Boiada



Venha, sente aqui ao meu lado. Pegue esse cigarrinho de palha aqui e vamos prosear um bocado. Não se acanhe, não tem perigo. Um só não vai te fazer mal. Mas fale baixinho, isso. Não está ouvindo? É o som do silêncio. Isso mesmo, preste só atenção. Quem nos está fazendo companhia é o vento. E as estrelas lá de cima. Uma, duas, três, nossa, acho que as Três Marias também. Olha elas lá nos alumiando.

Bonito, não? Também achei. Mas, sabe, acho que amanhã eu vou lá no pasto. Faz tempo que não passo lá pra ver os bois. Eram tantos que nem sei dizer quem é quem. E a dona sabe de cor o nome de cada um. Minha Nossa, tenho memória pra isso, não. Já basta o tanto de gente que se conhece por aí, o tanto de histórias que a gente tem que ouvir e as que também carrega com a vida, né não?

E ainda tem quem nomeia a própria boiada... Engraçado isso. Mas outro dia eu me dei conta lá em casa, já apijamado, prestes a dormir: a gente precisava mesmo dar nome a esses bois que passam pela gente, sabia? Eu iria me sentir uma pessoa mais tranqüila. Ia até poder dizer “Prazer” para o mundo com um tanto mais de sinceridade.

O que você me diz?

01 maio, 2008

Pangaré



Ave Maria, danado desse pangaré que não anda! Logo agora que eu decidir ser um cara valente e seguir por aí, galopando minha audácia pra redondeza toda ver. Todo mundo ali gosta de uma novidade, e uma crina novinha e penteada é tudo o que eles querem, meu senhor. É verdade, não acredita? Pois o senhor trate de passar às cinco e meia pela praça pra reparar o burburinho que vai ser essa sua roupa nova engomada. Imagine então um potro desse, robusto? Eu queria mostrar meu cavalo novo, mas ele parece estar cansado. Deu essa leseira nele que ainda não entendi de onde veio. Tomara a Deus que ele não deite, porque essa sorte de animal quando se deita, cruzes, é sopro de coisa ruim na certa. Já dizia a senhora minha avó, tão sabida ela, que Deus a guarde.

[...]

Homem de Deus, o que você precisa é dar de comer a esse burrico aí. Tá esperando o quê, me diga? Não adianta nada você montar, gritar, sair correndo por essas ruas da cidade, se exibindo todo prosa pras raparigas, com um cavalo bichado desse jeito. Vê se toma prumo nessa vida, seu moço, e vá dar logo de comer pro bichano, coitado. Deixe ele bebericar um bocado dessa água. Senão, meu amigo, desculpe-me a franqueza das palavras, mas essa fama sua de cavaleiro não vai passar da boca miúda do povo, que você sabe, adora falar dos outros. E com todo o respeito, deixa eu tirar até meu chapéu pra dizer isso, mas o senhor me dê é licença para lhe falar: o pobre do pangaré merece coisa melhor, tadinho. E, pelo visto, mais do que o senhor, não é mesmo?


[Moral dessa pretensiosa fábula: mesmo com o cavalo cansado, não podemos deixar de valorizar a majestade do cavaleiro -- ou em quem nele monta. Nessas horas, admiro a simplicidade brejeira das palavras de Roberto Carlos -- sim, havemos de admirá-lo, senhores --, como as que ele canta em "Fera ferida"]