Auréola Branca disse...
“Já construí tapeçarias de palavras, sabes? Imensas, largas, que escondem-se no meu baú do passado. Ficaram tão bonitas no final, que acabo por satisfazer-me ao olhá-las.”
Prezada Auréola, que também nos prestigia com sua visita a este espaço estendendo na entrada da velha casa parte de sua tapeçaria de palavras. Mas eu confesso que o que tem me deixado inquieto esses dias é a existência de muitas outras que não saem da nossa boca, por maior que seja o esforço ou a intenção de expeli-las porta afora. Você as deve conhecer: são aquelas palavras cruzadas aqui dentro do peito. Entrelaçadas num só corpo, elas atapetam um chão às vezes varrido pelo silêncio, que faz questão de nos encobrir sem, no entanto, se preocupar em nos acolchoar ou dar outro conforto qualquer.
Mas, sabe, Auréola, ontem ocorreu um rito diferente e inédito aqui na velha casa. Eu mesmo só vi pelas frestas da veneziana, porque era muito particular, um evento para poucos. Num salão todo simples, de cor crua, toda sorte de sentimentos deixaram de se confundir no trânsito de cruzamentos e encruzilhadas aqui dentro para rodar de mãos dadas, como se estivem todos ali dançando uma ciranda.
O som que embalava o movimento circular dos participantes era o das batidas do peito. O coração se revestiu de couro para servir àquela cerimônia como um atabaque e assim dinamizar a energia vital do ambiente. No centro da roda, estava a mesma moça das miçangas já descritas pelas bandas de cá. Ela vestia blusa e saia rodada, ambas brancas, mas ostentava no peito os colares matizados que elaborou noites a fio.
Não havia naquele salão ninguém mais formosa que ela. Só mesmo a nobreza da ciranda era digna de maior fascínio. Não pela ação dos sentimentos (mesmo ainda um tanto divergentes) ali congraçados em união, e sim pela proposta por eles apresentada: correr uma gira dentro do salão de forma a louvar a moça, meritosa em toda sua luta de recuperar a própria dignidade.
O público percebeu que, entre cantigas e aplausos, um toque singular caiu sobre o epicentro daquela roda. Vinha do alto, como costumam associar o caminho que as inexplicáveis benesses nos chegam aqui embaixo sem hora marcada. Mas, apesar de encantado, o momento não tinha muito de esotérico. Era apenas sublime, divinal. Apenas o branco do vestido dela resplandecia sobre as paredes cruas da casa. É que a moça pôde, enfim, debutar uma nova linhagem para se apresentar o mundo, oferecida em retribuição ao porte majestoso apresentado por ela.
Agora, numa nova roupagem, ela se sente mais disposta a traçar novos fios, cortes, tramas do seu dia-a-dia, sem o medo das palavras que nela ressoava antes. Esta é sua nova vida incorporada, motivo e valor de sua atual devoção. Eis o ímpeto para fazer figurar seu nome contando, com orgulho, sua história em uma nova tapeçaria de palavras.
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“Cirandeiro, cirandeiro ó / A pedra do seu anel / Brilha mais do que o sol”.